O ESPÍRITO E O TEMPO - CAPÍTULO III
1. O CICLO DO FORMALISMO — Para bem compreendermos o processo de libertação
das energias vitais do Cristianismo, através do Espiritismo, precisamos traçar rapidamente o
esquema do formalismo cristão. Em primeiro lugar, temos a prédica do Cristo, que, como já
vimos, era inteiramente livre de formalismos, realizada nas margens do lago de Genezaré,
nas estradas, nas ruas, nas praças e nos pátios do Templo de Jerusalém, ou nas próprias
tribunas das sinagogas. Em segundo lugar, a tentativa apostólica de formalizar os ensinos,
enquadrando-os no sistema judaico. É o caso da exigência de circuncisão dos novos
adeptos, de oferta de sacrifícios no templo, de aplicação do batismo, e assim por diante. Em
terceiro lugar, a formalização medieval do Cristianismo, que acabou por se enquadrar na
sistemática religiosa das antigas ordens ocultas, por submeter-se aos ritos, ao aparato
litúrgico e às formas mágicas (sacramentais) dos cultos pagãos. Em quarto lugar, a
libertação do formalismo, iniciada pela Reforma, e que vem completar-se no Espiritismo.
Esse esquema, limitado ao Cristianismo, enquadra-se num esquema mais amplo, que
abrange todo o processo religioso da humanidade, em seus mais variados aspectos.
Vejamos esse esquema maior, em sua amplitude universal. Primeiro, temos o mediunismo
primitivo, em que as relações entre o homem tribal e os espíritos se processavam de maneira
natural, espontânea, sem necessidade de formalidades especiais, pelo surto inevitável da
mediunidade entre os selvagens. Depois, temos a formalização rudimentar dessas relações,
entre os próprios selvagens, que deram início ao culto dos espíritos, seguindo os preceitos
da reverência tribal aos caciques e pagés. Assim, a formalização começou na própria era primitiva,
no horizonte tribal. Mas só mais tarde iria tomar aspectos definidos, no processo do
desenvolvimento da vida social.
Partimos, portanto, da liberdade mediúnica da vida tribal, para um segundo estágio, que
é o da formalização do culto familial, no horizonte agrícola, com a instituição progressiva do
culto dos ancestrais. O terceiro passo é a criação dos sistemas oraculares, no horizonte
civilizado, quando o culto dos ancestrais se amplia e se complica, para servir à comunidade,
à cidade. O quarto estágio é o da sistematização das grandes religiões, com seu formalismo
demasiado complexo, apoiado em complexas formulações teológicas, em minuciosa
racionalização teórica. O quinto passo, aquele que estamos dando no momento, através do
Espiritismo, é o da volta à liberdade primitiva, com o rompimento dos formalismos religiosos
de qualquer espécie.
Quando o Cristo anunciou, à mulher samaritana, que um dia os verdadeiros adoradores
de Deus o adorariam em espírito e verdade, sem necessidade de se dirigirem ao Templo de
Jerusalém ou ao Monte Garazin, nada mais fez do que prever a seqüência do
desenvolvimento histórico do processo religioso. O Cristo sabia, não em virtude de poderes
misteriosos, mas em conseqüência de sua natural elevação espiritual, que a evolução
religiosa levaria o homem à libertação dos formalismos asfixiantes do culto exterior. Sabia
também, como os grandes filósofos do passado sabiam outras muitas coisas, que o seu
próprio ensino seria formalizado, asfixiado nas formas do culto, deturpado, para afinal ser
libertado e restabelecido.
Vemos assim que o Espiritismo, ao apresentar-se, na forma de Consolador Prometido,
de Espírito da Verdade, de Paráclito anunciado pelo Cristo, não precisa de justificações
teológicas ou formais. Sua justificação está no próprio desenvolvimento do processo histórico
da evolução religiosa. Conforme ao símbolo hindu da evolução, que a Sociedade Teosófica
adotou no seu emblema, — uma cobra em círculo, mordendo a ponta da cauda — o
Espiritismo volta à liberdade de relações mediúnicas da era primitiva, enriquecido com a
experiência, e o conhecimento das leis espirituais. O que leva os religiosos formalistas a não
aceitarem o Espiritismo como o Consolador é o preconceito formal, esse mesmo preconceito
que levou os judeus formalistas a rejeitarem o Cristo como Messias. Se esses religiosos
conseguissem compreender o processo religioso em sua estrutura cíclica de evolução, não
se perderiam em dúvidas de natureza mística, diante de uma realidade natural e
historicamente evidente.
As relações mediúnicas naturais da era primitiva, quando homens e espíritos conviviam
na natureza, eram possíveis diante da naturalidade da mente primitiva. Mas a evolução é um
processo de enriquecimento. Os homens, ao se civilizarem, complicaram sua mente,
perderam-se no dédalo dos raciocínios e das suposições, afastaram-se da naturalidade
primitiva. Os espíritos, identificados como seres de outra espécie, assumiram, cada vez mais,
papel misterioso no quadro da natureza. Tudo isso era necessário, pois a evolução exige a
seqüência de etapas que vimos acima. Uma vez, porém, enriquecida a mente, desenvolvida
em seus poderes de abstração e de penetração, o homem pode voltar, com conhecimento
das leis naturais, à naturalidade primitiva. É por isso que, no Espiritismo, as relações entre
homens e espíritos se processam com naturalidade, livres das complicações já agora inúteis
do culto, do formalismo religioso.
2. LIBERTAÇÃO DAS FORÇAS VITAIS — A transmissão da cultura se processa
através de fases cíclicas. Primeiro, as forças vitais, as energias criadoras, emanadas do
espírito, se projetam nas formas materiais e nelas se condensam. Depois, essas forças se
libertam, para enriquecer o espírito. Melhor compreenderemos isto, se tomarmos o exemplo
concreto de uma obra literária. As energias criadoras do autor se projetam e se condensam
nos capítulos de um livro. O leitor as liberta, ao ler e estudar a obra. As energias libertadas
enriquecem o espírito do leitor e poderão sugerir-lhe novas atividades mentais, produzindo a
criação de nova obra. Temos assim os ciclos de criação e transmissão da cultura.
Estudando minuciosamente esse processo, em seu ensaio sobre "As Ciências da
Cultura", Ernest Cassirer mostra-nos o exemplo do mundo clássico, cujas forças vitais foram
condensadas nas obras da cultura greco-romana e posteriormente libertadas pelo
Renascimento, para a fecundação do mundo moderno. A religião, que é um processo
cultural, desenvolve-se de acordo com esse mesmo sistema. Quando tratamos, portanto, da
libertação das forças vitais do Cristianismo, através do Espiritismo, não estamos inventando
nenhuma novidade. Nem foi por outro motivo que Emmanuel classificou o Espiritismo de
Renascença Cristã.
As forças vitais do Judaísmo, projetadas e condensadas nas Escrituras e na Tradição
Judaica, foram libertadas pelo Cristianismo, que as reelaborou em novas formas de expressão
religiosa. Essas novas formas, por sua vez, se projetaram e. condensaram nos
Evangelhos e na Tradição Cristã. O Espiritismo as desperta, liberta e renova, para reelaborá-
las em novas formas. Entretanto, como as novas formas espirituais devem ser livres, em
virtude da evolução humana, elas se apresentam quase irreconhecíveis, perante os cristãos
formalistas. A codificação de Allan Kardec é repudiada pelos cristãos, da mesma maneira
que a codificação evangélica o foi pelos judeus.
Esse problema do repúdio das novas formas não é privativo do processo religioso. Em
todo o desenvolvimento cultural, ele sempre está presente. É o caso, por exemplo, do
repúdio das velhas gerações ao modernismo, às inovações dos hábitos e costumes. É o
mesmo caso do repúdio da poesia e da pintura modernas pelos poetas e músicos apegados
às formas clássicas. Quando Hegel descreveu a evolução da idéia do Belo através das
formas materiais, colocou precisamente esse problema. O poeta Rabindranah Tagore
declara, em suas memórias, que espantou-se com as regras do canto no mundo ocidental,
por achá-las demasiado livres. Estava habituado à doçura monótona das canções hindus, e
repelia os exageros guturais da nossa ópera.
No processo de desenvolvimento do Cristianismo, o Velho Testamento, as antigas
escrituras judaicas, representam a arte oriental do estudo de Hegel. Os Evangelhos são a
condensação clássica, equilibrada, das energias vitais do judaísmo, libertas e reelaboradas.
A codificação de Allan Kardec é a libertação romântica dos moldes clássicos. Em Kardec, o
espírito rompe o equilíbrio clássico dos Evangelhos, para se lançar acima do plano das
formas e encontrar o plano da vida. Isso não quer dizer que o Cristo fosse formalista. Pelo
contrário, já vimos que todo o seu ensino e toda a sua ação se desenvolveram no plano vital,
superando as formas. Acontece que os homens do seu tempo não estavam em condições de
entendê-lo, como ele mesmo declarou, e somente na época de Kardec se tornou possível a
libertação vital dos seus ensinos
Ao atingir a fase de libertação vital, o Cristianismo volta naturalmente às suas origens.
Os ensinos de Cristo, deformados ou velados pela vestimenta formal, retomam a sua vitalidade
original. Da mesma maneira por que o Cristo podia confabular com os espíritos no
Monte Tabor ou no Horto das Oliveiras, sem a mediação de sacerdotes ou de ritos especiais,
os cristãos libertos podem hoje confabular com os seus entes queridos, os seus guias
espirituais, e até mesmo com aqueles espíritos ainda perturbados pela própria inferioridade
— como o Cristo também o fez — sem nenhuma espécie de ritual ou de formalismo religioso.
O processo natural de relações, entre os espíritos e os homens, restabelece-se na
atualidade.
Claro que esse restabelecimento tem de ser repelido pelos que continuam apegados
aos sistemas formais do passado. Um cristão que se habituou à idéia da natureza
sobrenatural dos espíritos não pode ver, sem horror, a naturalidade das relações mediúnicas.
Por outro lado, a concepção do sagrado, alimentada longamente na tradição cristã, em
oposição ao profano, faz que os cristãos formalistas se horrorizem com a possibilidade de
relações com os mortos. Mesmo algumas pessoas de vasta cultura mostram esse escrúpulo.
Thomas Man, o grande escritor alemão, admitiu a realidade do fenômeno de materialização
mediúnica, mas entendeu que ele representava uma violação da natureza sagrada da morte.
Outros pesquisadores, inclusive cientistas, ao verem que os espíritos podem romper o
silêncio sagrado, o mistério do túmulo, abandonaram suas pesquisas. O formalismo religioso
tem o seu poder, e o exerce até mesmo sobre aqueles que parecem libertos de preconceitos
religiosos.
Exatamente por isso, o Espiritismo só pôde surgir em meados do século dezenove,
depois de amplo desenvolvimento das ciências, que permitiram a criação de um clima mental
mais arejado no mundo. As ciências restabeleceram a idéia do natural para todos os
fenômenos, libertando os homens do temor do sobrenatural. Os fenômenos espíritas,
encarados como naturais, puderam ser estudados em sua verdadeira natureza. Com isso, as
forças vitais do Cristianismo, que emergiam da própria naturalidade das relações mediúnicas,
puderam ser libertadas.
3. A VOLTA AO NATURAL ─ Partindo do natural, os homens construíram na terra o seu
mundo próprio, artificial. O desenvolvimento da inteligência humana, cuja característica é o
pensamento produtivo, tinha forçosamente de levar os homens pelos caminhos da abstração
mental, e conseqüentemente do formalismo. O mundo humano é feito de convenções.
Sempre que essas convenções contrariam as leis naturais, surge o conflito entre o homem e
a natureza. Uma das soluções encontradas para esse conflito foi a concepção do
sobrenatural. Graças a ela, os homens puderam manter-se ilusoriamente seguros no seu
mundo convencional. Mas a finalidade do convencionalismo, e conseqüentemente do
formalismo, não é distanciar o homem da natureza, e sim facilitar a sua adaptação a ela. Por
isso, mais hoje, mais amanhã, o homem teria de voltar ao natural, destruindo pouco a pouco
os excessos de convencionalismo, os exageros perniciosos do seu artificialismo.
O sobrenatural não é, como querem os filósofos materialistas, uma fuga ao real, mas
apenas uma deturpação do natural. Os espíritos não foram inventados, como já vimos em
estudos anteriores. Quando os homens primitivos encontravam nas selvas os fantasmas de
seus antepassados, não estavam sonhando, nem sofrendo alucinações, e muito menos
formulando abstrações que suas mentes rudimentares ainda não comportavam. O que
acontecia era bem mais simples, como simples sempre são os processos da natureza. Eles
apenas se defrontavam com espíritos, que vinham a eles sem a interferência de práticas
mágicas ou de ritos sacerdotais, por força das leis da natureza.
Temos na Idade Média a fase mais aguda de artificialização da vida humana. E isso
tanto vale para o medievalismo europeu, quanto para os demais. Nem é por outro motivo que
se considera a Idade Média a fase oriental do Ocidente. Porque as grandes civilizações
orientais foram também o resultado de condensações do formalismo. De tal maneira o
formalismo europeu se condensou no período medieval, que o sobrenatural se transformou
em instrumento de poder absoluto, nas mãos das classes sacerdotais e aristocráticas. O
clérigo e o nobre dispunham do poder mágico dos símbolos, e dominavam o mundo. Os
espíritos se tornaram propriedade das classes dominantes, e as classes inferiores sofreram a
asfixia espiritual do poder convencional. Toda manifestação espiritual ocorrida entre o povo
estava condenada. Os médiuns eram bruxos e deviam ser torturados ou queimados.
Os excessos do formalismo, tanto social como religioso, teriam de chegar, como
realmente chegaram, a um ponto máximo de condensação. E quando atingiram esse ponto,
como acontece com os minerais radioativos, começaram a libertar as próprias energias.
Estão em erro aqueles que pensam que as comunicações mediúnicas só ocorreram de
maneira intensa em meados do século dezenove, dando origem ao Espiritismo. Talvez
tenham ocorrido em maior número na Idade Média. Os espíritos se manifestavam por toda
parte, provocando os horrorosos processos contra os bruxos, de que os arquivos da justiça
eclesiástica estão cheios. Asfixiada a mediunidade natural, pela proibição clerical, pela
condenação das autoridades e da Igreja, os médiuns eram dominados por entidades
rebeldes, que desejavam, a todo custo, romper o círculo de ferro das proibições. A mediunidade
irradiava por si mesma, na crosta mineral das condensações do formalismo. As celas
dos conventos e dos mosteiros se transformaram em câmaras mediúnicas, que antecipavam
as câmaras de tortura.
Conan Doyle entendeu que se tratava de "casos esporádicos, de extraviados de uma
esfera qualquer". Espíritos extraviados, que mergulhavam na terra e provocavam as tragédias
mediúnicas. Na verdade, não eram extraviados, mas espíritos apegados à terra,
ligados à vida humana, sintonizados com a esfera dos homens, e que legitimamente reivindicavam
o seu direito de comunicação. As leis naturais reagiam contra o artificialismo das
convenções religiosas. Quanto mais se queimavam os bruxos, mais eles surgiam, no próprio
seio das ordens religiosas. Tornou-se necessário admitir-se a realidade de algumas visões,
de algumas comunicações, e intensificar-se a aplicação do exorcismo, para afastar os demô-
nios dos conventos, evitando a ceifa exagerada de vidas humanas. Mas isso não impediu
que os demônios intensificassem suas manifestações, ostensivas ou ocultas, gerando as
numerosas formas de heresias que a inquisição teve de liquidar a ferro e fogo, num
desmentido flagrante aos ensinos cristãos de fraternidade universal.
Os próprios horrores da luta formalista contra a natureza deveriam, entretanto, provocar
as reações libertárias que se acentuariam nos fins da Idade Média, abrindo perspectivas para
o mundo moderno. Os homens teriam de reconhecer os exageros de seu artificialismo, e
buscar novamente a natureza. Nessa busca, poderiam desviar-se para outro extremo,
entregando-se excessivamente à natureza exterior, esquecidos de sua própria natureza
interior, a humana ou espiritual. Foi praticamente o que se deu no mundo moderno, com os
exageros cientificistas em que ainda nos perdemos. Para corrigir um exagero, entretanto, era
necessário o outro. Somente o desenvolvimento científico, segundo assinala Kardec em "A
Gênese", poderia libertar a mente humana dos fantasmas teológicos e prepará-la para
enfrentar de maneira positiva a realidade da sobrevivência humana, em sua simplicidade
natural.
A volta à natureza começou pelo exterior, no campo dos fenômenos. A investigação
científica mostrou o absurdo dos convencionalismos dominantes, fulminou as superstições
seculares. O século dezoito, considerado o século de ouro da ciência, já prenunciava o
advento do Espiritismo. Um nobre sueco, Swedenborg, um dos homens mais sábios da época,
desenvolveu a própria mediunidade, e o romancista Honoré De Balzac, muito antes da
codificação, tornou-se médium curador ou médium "passista", como hoje dizemos. Os
espíritos já não eram encarados como deuses ou demônios, mas como seres humanos
desprovidos de corpo material.
4. UMA INVASÃO ORGANIZADA — A volta do homem à natureza, após o domínio do
convencionalismo medieval, começou pelo exterior, mas tinha de atingir o interior. A
observação dos fenômenos físicos, revelando as leis do mundo material, levaria
necessariamente ao encontro dos fenômenos psíquicos. O caso das Irmãs Fox, em Hydesville,
EE. UU., oferece-nos um exemplo típico desse processo. Primeiro, os "raps", os sinais
físicos, materiais, que suscitaram a atenção e a investigação de curiosos e homens de cultura.
Depois, o intercâmbio, através dos sinais físicos, com as entidades psíquicas que os
provocavam. Desde bem antes de Hydesville, os espíritos já vinham provocando preocupa-
ções em toda parte. Ernesto Bozzano conta o caso de Jonathan Koons, que construiu no
quintal de sua casa uma câmara espírita. Ao contrário das celas conventuais, esta câmara
não antecipava nenhuma tortura. Construída na América, filha da Reforma, em ambiente
livre, a câmara espírita de Koons prenunciava o advento de uma nova era.
Comparando as ocorrências mediúnicas da Idade Média com as dos séculos dezoito e
dezenove, Conan Doyle chama á estas últimas de "uma invasão organizada". No período
medieval, e mesmo depois, as manifestações não seguiam uma diretriz segura. Os médiuns
foram sacrificados aos milhares, inutilmente. Daí sua conclusão de que eram espíritos "extraviados
de uma esfera qualquer'". Nos dois últimos séculos, pelo contrário, as
manifestações parecem seguir um grande plano, articuladas entre si. De Swedenborg, cuja
mediunidade se desenvolve em 1744, a Edward Irving, o pastor escocês, em cuja igreja se
verifica, em 1831, um surto alarmante do dom de línguas, até o episódio curioso dos
"shakers", na Califórnia, em 1837, e depois o caso de Hydesville, há toda uma seqüência de
manifestações, que prepararam o advento do Espiritismo. Conan Doyle chega mesmo a
notar que a invasão é precedida dos "batedores", das patrulhas de reconhecimento ou de
preparação do terreno.
O caso dos "shakers" justifica essa tese. Eram emigrados ingleses de uma seita
protestante, que se localizaram na Califórnia. Nada menos de sessenta grupos, formando um
grande acampamento, que em 1837 foram surpreendidos por uma invasão de espíritos.
Estes penetravam nas casas e se apossavam dos médiuns, promovendo ruidosas
manifestações, que duraram sete anos consecutivos. Manifestavam-se como índios pelevermelha,
e enquanto demonstravam aos "shakers" a possibilidade do intercâmbio com o
mundo espiritual, eram por estes evangelizados. Entre os "shakers" havia um homem culto,
Mr. Elder Evans, que relatou os fatos. Certo dia, os índios anunciaram que iam partir.
Despediram-se, advertindo que voltariam mais tarde "para uma invasão do mundo". Quatro
anos depois, em 1848, ocorriam as manifestações de Hydesville, com as Irmãs Fox. Os
índios haviam dito a Mr. Evans que fosse até lá, e o pastor obedeceu, estabelecendo assim a
ligação terrena entre os dois fatos espirituais.
Mais curioso ainda o que aconteceu com outro precursor do Espiritismo nos Estados
Unidos, André Jackson Davis, cuja mediunidade se desenvolveu em 1844. Conan Doyle, comentando
o fato, e referindo-se às obras de Davis, que ainda hoje constituem um roteiro para
os espíritas norte-americanos, acentua: "Ele começou a preparar o terreno, antes que se
iniciasse a revelação." A 31 de março de 1848, Davis escreveu no seu diário: "Esta
madrugada um sopro quente passou pela minha face e ouvi uma voz suave e forte dizer:
Irmão, um bom trabalho foi começado. Olha, surgiu uma demonstração viva! — Fiquei
pensando o que queria dizer essa mensagem." Ora, exatamente nessa madrugada come-
çavam os fenômenos da casa da família Fox, com as filhas do metodista John Fox, que
marcariam o início das investigações espíritas no mundo.
Como se vê, a tese da "invasão organizada" não é gratuita. Tem bom fundamento
histórico, e poderíamos dizer,bom fundamento profético, ou mediúnico. Os "batedores", ou
batalhões de reconhecimento, realizaram primeiramente suas incursões, preparando terreno.
Os anunciadores, como Emmanuel Swdenborg, Edward Irving, Jackson Davis, realizaram o
papel dos profetas bíblicos. E Davis, particularmente, o de João Batista, o precursor,
anunciando o advento do Consolador. A seguir, a invasão organizada realizou-se com pleno
êxito, sacudindo a terra de um extremo a outro, durante dez anos. De 1848 a 1858, os
fenômenos mediúnicos agitaram o mundo, provocando a atenção dos sábios e aturdindo os
teólogos. Em 1854, o Prof. Hypollite Léon Denizart Rivail tinha a sua atenção despertada
para as mesas-girantes, que então pululavam em Paris e em toda a França. E em 1857 já
dava a público a obra fundamental da codificação espírita, "O Livro dos Espíritos", alicerce
inabalável da nova revelação, obra básica do Espiritismo.
Mais tarde, em 1868, ao publicar "A Gênese", o Prof. Rivail, já então Allan Kardec, diria:
"Importante revelação se processa na época atual e nos mostra a possibilidade de nos comunicarmos
com os seres do mundo espiritual. Não é novo, sem dúvida, esse conhecimento,
mas ficara até os nossos dias, de certo modo, como letra morta, isto é, sem proveito para a
humanidade. A ignorância das leis que regem essas relações o abafara sob a superstição. O
homem era incapaz de tirar, desses fatos, qualquer dedução salutar. Estava reservado à
nossa época desembaraçá-los dos acessórios ridículos, compreender-lhes o alcance, e fazer
surgir a luz destinada a clarear o caminho do futuro." ("A Gênese", Cap. I, vers. 11.)
Já nessa época a invasão organizada triunfara plenamente. O mundo conhecia uma
nova doutrina, que oferecia aos homens o caminho de retorno à espiritualidade.
CAPÍTULO IV - ANTECIPAÇÕES DOUTRINÁRIAS
1. A NEBULOSA DE SWEDENBORG — O Espiritismo formou-se, como uma estrela,
no seio de uma nebulosa. É parte de uma verdadeira galáxia, que se estende pelo infinito, a
partir dos mundos inferiores, até os mais elevados. Certamente, nos perderíamos, se
quiséssemos examinar toda a extensão da galáxia, toda a complexidade de doutrinas e
teorias que precederam o Espiritismo. Somos forçados, por isso mesmo, a limitar a nossa
ambição, procurando o foco mais próximo da sua elaboração. Esse foco, segundo o
entendeu Conan Doyle, é a doutrina de Emmanuel Swedenborg. Uma verdadeira nebulosa
doutrinária, em que os elementos em fusão nos aturdem, mas de cujo seio partem os
primeiros raios, nítidos e incisivos, de uma nova concepção da vida e do mundo.
Ao tratar dos fatos que provocaram o desencadear do movimento espírita, Conan Doyle
referiu-se aos "batedores" ou às "patrulhas de vanguarda", que prepararam o terreno para a
"invasão espiritual organizada" do nosso mundo. Do ponto de vista doutrinário, encontramos
também os "batedores" ou preparadores do terreno. O primeiro deles, que realmente se
abalança a elaborar uma doutrina, estribado em sua fabulosa cultura e sua poderosa
inteligência, é Swedenborg. Conan Doyle o chama de "pai do nosso novo conhecimento dos
fenômenos sobrenaturais". Tendo sido um dos homens mais cultos da sua época, dotado de
grande inteligência e de mediunidade polimorfa, esse vidente sueco antecipou, de maneira
confusa, a elaboração da Doutrina dos Espíritos.
Ao contrário de Kardec, que começou pela. observação científica dos fenômenos
mediúnicos, Swedenborg se inicia como um antigo profeta, recebendo uma revelação divina.
Foi em abril de 1744, em Londres, que a revelação se verificou. Não obstante a natureza
física do primeiro fenômeno por ele descrito, com evidente emanação de ectoplasma, não foi
esse aspecto o que lhe interessou. Outro, mais importante, lhe chamava a atenção, e ele
mesmo o descreveu com as seguintes palavras: "Uma noite o mundo dos espíritos, céu e
inferno, se abriu para mim, e nele encontrei várias pessoas conhecidas, em diferentes
condições. Desde então o Senhor abria diariamente os olhos do meu espírito para que eu
visse, em perfeito estado de vigília, o que se passava no outro mundo, e pudesse conversar,
em plena consciência, com os anjos e os espíritos."
A atitude profética de Swedenborg é indiscutível. Diante dos fenômenos, esse homem
extraordinário, dotado de vastos conhecimentos em física, química, astronomia, zoologia,
anatomia, metalurgia e economia, além de outros ramos das ciências pelos quais se
interessava, não se coloca em posição de crítica e observação, mas de passiva aceitação.
Considera-se eleito para uma missão espiritual, senhor de uma revelação pessoal, e portanto
incumbido, como Moisés ou Maomé, de ensinar enfática e dogmaticamente o que lhe era
revelado. Atitude completamente diversa da assumida por Kardec, que não se julgava um
profeta, mas um pesquisador, um rigoroso observador dos fatos, dos quais devia
racionalmente deduzir a necessária interpretação.
A primeira elaboração teórica de Swedenborg não foi, portanto, filosófica nem científica,
mas teológica. Chegou a construir urna complicada interpretação da Bíblia, através de um
sistema de símbolos, dizendo-se o único detentor da verdade escriturística, que penetrava
com o auxílio dos anjos. Essa pretensão o levou naturalmente à convicção da infalibilidade.
Suas explicações deviam ser aceitas como lições indiscutíveis. Swedenborg via o mundo
espiritual, conversava com os espíritos, recebia instruções diretas, e por isso se julgava
capaz de tudo explicar, sem maiores preocupações. Tornou-se um místico, distanciado da
experiência científica a que se dedicava anteriormente.
Essa curiosa posição de Swedenborg o transforma num elo entre dois períodos da
evolução espiritual do homem. De um lado, temos o horizonte profético, carregado de misticismo,
impondo-lhe o seu peso. De outro lado, o horizonte civilizado, que lhe abre suas
perspectivas, em direção ao horizonte espiritual. O vidente sueco permanece nos limites
desses dois mundos. Através da sua teologia, firma-se no passado, e através de sua
doutrina das esferas, que formulará a seguir, projeta-se ao futuro. Escrevia em latim os seus
livros complicados, mas, apesar disso, apresentava uma visão nova do problema espiritual.
Não se contentou em formular uma doutrina, e fundou urna religião, apoiada nas seguintes
obras: "De Caelo et Inferno exauditis et visis", Nova Jerusalém" e "Arcana Caelestia".
O que faz Swedenborg um precursor doutrinário cio Espiritismo é a sua posição em
face do mundo espiritual, que ele considera de maneira quase positiva. Após a morte, os
homens vão para esse mundo, e não são julgados por tribunais, mas por uma lei que
determina as condições em que passarão a viver, em planos superiores ou inferiores, nas
diferentes "esferas" da espiritualidade. Anjos e demônios nada mais eram, para ele, do que
seres humanos desencarnados, em diferentes fases de evolução. Suas descrições do mundo
espiritual assemelham-se bastante às que encontramos nas comunicações dadas a Kardec
ou recebidas atualmente pelos nossos médiuns. O Inferno não era lugar de castigo eterno,
mas plano inferior, de que os espíritos podiam subir para os mais elevados, purificando-se. A
terra, um mundo de depuração espiritual.
Uma importante lição devemos tirar, entretanto, da vida e da obra de Swedenborg: a de
que o Espiritismo está certo ao condenar a formulação de teorias pessoais pelos videntes, e
encarecer a necessidade da metodologia científica, para verificação da verdade espiritual.
Swedenborg foi o último dos reveladores pessoais, e abriu perspectivas para a nova era, que
devia surgir com Kardec. Não é a sua interpretação dos fatos o que vale em sua obra, mas
os próprios fatos, posteriormente confirmados pela observação e a experimentação
espiríticas, oferecendo aos homens uma concepção nova da vida presente e da vida futura.
2. RESTOS DE NEBULOSA — Considerando a doutrina de Swedenborg como uma
nebulosa, na qual encontramos a solidificação de um pequeno núcleo, que pode ser tomado
como uma antecipação da Doutrina dos Espíritos, não devemos esquecer-nos de que aquela
nebulosa fazia parte de um vasto sistema, de toda uma galáxia. Podemos dizer que na
imensa galáxia das doutrinas espiritualistas, que se estendem ao longo da evolução
espiritual do homem, a nebulosa de Swedenborg marca o primeiro momento da condensação,
para que possa formar-se a estrela do Espiritismo, no mundo moderno. Formada a
estrela, entretanto, a nebulosa não desaparece. Continuam no espaço os seus restos, muitas
vezes empanando o próprio brilho da estrela nascente.
Ninguém explicou melhor esse processo do que Allan Kardec, no primeiro tópico da
"Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita", ao lançar a palavra Espiritismo, como o
neologismo francês que passaria a designar a nova concepção do mundo. De maneira
sintética, esclarece o codifica-dor: "Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a
Doutrina Espírita; como generalidade, liga-se ao Espiritismo, do qual apresenta uma das
fases." Essa fase é precisamente a que apontamos acima, como a de consolidação de uma
estrela, de um núcleo positivo de espiritualismo, no seio da imensa nebulosa.
O que faz do Espiritualismo urna galáxia de nebulosas, é a sua própria origem, as
condições históricas do seu aparecimento e desenvolvimento. Do homem primitivo ao homem
civilizado há toda uma gradação intelectual, moral e psíquica, assinalando os
sucessivos aumentos de capacidade de compreensão do espírito humano. As doutrinas
espiritualistas, indispensáveis à evolução espiritual, e formando, mesmo, parte dessa
evolução, apresentam as características dos diversos períodos em que surgiram. Quanto
mais próximas do mundo primitivo, mais confusas, carregadas de animismo, fetichismo e
magia. Quanto mais aproximadas do mundo civilizado, avançando para o horizonte espiritual,
mais racionalizadas, com disciplinação racional dos próprios resíduos mágicos.
As mais vigorosas .dessas doutrinas são as que provêm do horizonte-profético, ligadas
ao processo das profecias ou revelações pessoais, e que resultaram nas chamadas religiões
positivas do horizonte-civilizado. O caráter pessoal dessas doutrinas, seu sentido explicativo,
sua função didática, conferem-lhes o tom dogmático, que as torna inadequadas na era
científica. Essa inadequação ocasionou o desprestígio do Espiritualismo, 'que o progresso
das ciências relegou ao plano das superstições. Diante da "clareza .e distinção" cartesianas
das ciências, a confusão e o dogmatismo das religiões e das doutrinas ocultistas, bem como
as suas cargas hereditárias de fetichismo e magia, tornavam o Espiritualismo, perante as
elites culturais, um simples amontoado de resíduos primitivos.
O Espiritismo representa o momento em que o Espiritualismo, superando as fases
mágicas do seu desenvolvimento, atinge o plano da razão, define-se num esquema cartesiano
de "idéias claras e distintas". É a isso que chamamos a estrela que saiu da nebulosa.
Kardec explica, em "A Gênese", que o Espiritismo tem, "por objeto especial, o conhecimento
das leis do princípio espiritual". E acrescenta: "Como meio de elaboração, o Espiritismo se
utiliza, como as ciências positivas, do método experimental." Essa atitude permitiu-lhe, ainda
segundo expressões do codificador: "enfrentar o materialismo no seu próprio terreno e com
as suas mesmas armas". Foi, portanto, o Espiritismo, como doutrina moderna e de espírito
eminentemente científico, o processo de restauração do prestígio perdido do Espiritualismo,
diante do avanço das Ciências.
Poucos adeptos do Espiritismo, ainda hoje, apesar dos ensinos, das explicações e das
advertências de Kardec a respeito, compreendem essa posição da doutrina. Por isso, muitos
adeptos se deixam empolgar pelos restos de nebulosa que ainda procuram empanar o brilhoda
doutrina, através de comunicações mediúnicas de teor profético, muitas vezes tipicamente
apocalítico, que surgem a todo instante no movimento doutrinário. É natural o aparecimento
constante e insistente dessas pretensas reformulações doutrinárias. Elas correspondem à
permanência, determinada pela lei de inércia, de mentes encarnadas e desencarnadas, no
plano do pensamento mágico do passado. Essas mentes se sintonizam no processo de
comunicação mediúnica, repetindo inadequadamente, em nossa época, os processos
"reveladores" do horizonte-profético.
As "verdades novas" que essas comunicações mirabolantes pretendem transmitir, são
aquelas mesmas afirmações dogmáticas que causaram o desprestígio do Espiritualismo no
passado. Nada têm de novo, portanto. Pelo contrário, carreiam apenas o ranço do antigo
profetismo, carregado de magia e misticismo. De certa maneira, e às vezes, mesmo, de
maneira direta, são resíduos da Nebulosa de Swedenborg, ainda capazes de fascinar os
adeptos que não se contentam com a chamada "frieza científica" do Espiritismo. Seria bom
lembrarmos a esses adeptos que essa "frieza" não é suficientemente fria para ser aprovada
pelos cientistas, que não se cansam de condenar a "crendice" e o "religiosismo" da ciência
espírita. Como se vê, essa ambivalência da posição doutrinária, acusada ao mesmo tempo
pelo passado e pelo presente, confirma a sua natureza de marco divisório na evolução do
Espiritualismo e de momento de síntese no processo do conhecimento.
Como estrela que surgiu da nebulosa, o Espiritismo não pode conter os elementos
infusos daquela. Atentemos para estas palavras de Kardec, ainda do primeiro capítulo de "A
Gênese", para compreendermos melhor a natureza do Espiritismo: "Fatos novos se
apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas. Ele os observa, compara,
analisa, e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz as suas
conseqüências e busca as suas aplicações úteis." Meditando sobre estas palavras, o
estudante compreenderá a razão porque o Espiritismo não pode endossar as comunicações
mirabolantes, que o fariam retroceder ao seio da. nebulosa, tirando-lhe a força e o prestígio
que o sustentam no mundo atual, como um reduto espiritualista que desafia e repele o
materialismo, no mesmo terreno em que este opera, e com as suas próprias armas.
3. O PRECURSOR AMERICANO — Considerando a obra de Swedenborg como uma
antecipação doutrinária .do Espiritismo, — no seu aspecto histórico, e como "nebulosa
doutrinária", segundo já acentuamos — temos de estabelecer uma ligação entre ela e a obra do médium norte-americano Andrew Jackson Davis.
Enquanto Swdenborg era um sábio, Davis era semi-analfabeto, e além do mais, "fraco de
corpo e mentalmente pobre", como assinala Conan Doyle. Apesar dessa contradição, Davis
foi o continuador de Swedenborg e o precursor americano do Espiritismo. E esse fato é tanto
mais importante, exatamente pela contradição que encerra. Ela demonstra, com absoluta
clareza, que o espírito domina a matéria, e que o próprio conceito científico de paralelismo
psico-fisiológico fica abalado, diante do impacto das manifestações espíritas.
Andrew Jackson Davis está distanciado de Emmanuel Swedenborg não apenas no
espaço e no plano mental. Há entre eles a distância exata de um século, e além dessa
distância temporal, também a que já assinalamos no plano da cultura intelectual. Em relação
ao tempo, há esta curiosidade a anotar: Swedenborg desenvolve seus poderes mediúnicos
em abril de 1744, e Davis em março de 1844. De um a outro, saltamos exatamente de
meados do século dezoito a meados do dezenove. Mas não damos o salto sozinhos, porque
o espírito de Swedenborg nos acompanha. Realmente, na tarde de 6 de março de 1844,
Davis é arrebatado, em estado de transe mediúnico, para as montanhas de Catskill, a cerca
de quarenta milhas de sua casa, na cidadezinha de Poughkeepsie, para receber instruções
espirituais. Quem são os instrutores? Um deles é Galeno, o médico grego, e o outro é
Swedenborg, segundo declara Davis em sua auto-biografia. Como vemos, um curioso
episódio, que repete na América o encontro do Messias, no Tabor, com os espíritos de Elias
e Moisés.
Mas Davis não está ligado apenas a Swedenborg. Ele se apresenta, na História do
Espiritismo, como um poderoso elo mediúnico, que sustenta a unidade do processo doutrinário.
No passado, ele se liga com o vidente sueco, mas no futuro vai ligar-se com as
irmãs.Fox e Kardec. Quatro anos depois do encontro com Swedenborg, vemo-lo escrever no
seu diário as anotações referentes à voz que lhe anuncia os fatos de Hydesville. Ora, como
estes fatos se ligam diretamente ao trabalho de Kardec, Davis também se liga a esse
trabalho. A falta de visão de conjunto tem levado muitas pessoas a considerarem Davis um
caso à parte. Chegou-se mesmo a propor a tese da existência de um "espiritismo
americano", iniciado por Davis, em oposição ao "espiritismo europeu" de Allan Kardec. Mas
os fatos históricos e as ligações mediúnicas são de tal ordem, que todas essas proposições
nasceram condenadas ao olvido. A unidade do processo histórico se evidencia nas
poderosas ligações espirituais dos fatos mediúnicos. Davis é um elo, jamais um caso isolado,
pois a humanidade é una, e a fase das revelações parciais já ficou muito para trás.
A série de livros de Davis, intitulada "Filosofia Harmônica", teve mais de quarenta
edições nos Estados Unidos. A esta série seguiu-se, nos anos finais da vida de Davis, a das
"Revelações Divinas da Natureza". Num dos seus livros, intitulado "Princípios da Natureza",
ele prevê o aparecimento do Espiritismo, como. doutrina e prática mediúnica.' Depois de
acentuar que as comunicações espirituais se generalizarão, declara : "Não decorrerá muito
tempo para que essa verdade seja demonstrada de maneira viva. E o mundo saudará
alegremente o alvorecer dessa era, enquanto o íntimo dos homens se abrirá, para
estabelecer a comunicação espiritual, como a desfrutam os habitantes de Marte,
Júpiter e Saturno." Além dessas previsões, Davis desenvolve a doutrina de
Swedenborg, estendendo os seus princípios nos rumos da próxima codificação. O mundo
espiritual se lhe apresenta com a mesma nitidez com que o vidente sueco o descrevia, e
sujeito às mesmas leis de evolução que o Espiritismo afirmará mais tarde.
Ninguém melhor do que Conan Doyle para estabelecer a medida em que Davis avança
sobre Swedenborg, caminhando decisivamente em direção de Kardec. Vejamos o que diz o
grande escritor: "Davis tinha avançado além de Swedenborg, embora não dispusesse do
equipamento mental deste, para abranger todo o alcance da mensagem. Swedenborg vira o
céu e o inferno, como Davis também os vira e minuciosamente os descrevera. Mas
Swedenborg não tivera uma visão clara da situação dos mortos e .da verdadeira natureza do
mundo espiritual, com a possibilidade de retorno, como ao vidente americano foi revelado.
Esse conhecimento foi dado a Davis lentamente." Acrescenta Conan Doyle que, ao se
considerarem alguns fatos da vida de Davis, que são inegáveis, pode-se admitir o controle de
Swedenborg sobre ele. Controle de um Swedenborg evoluído, que vivera um século a mais,
na vida espiritual, o que justifica o avanço de Davis sobre a doutrina daquele.
A posição de Davis se esclarece por si mesma. É o próprio Davis quem se coloca no
limiar daquilo que podemos chamar a "era espírita", ou, dentro da terminologia que adotamos,
o "horizonte espiritual". Ele não se arroga o título de "Messias", mas reconhece, pelo
contrário, a sua condição de instrumento mediúnico, a serviço de espíritos superiores, que o
dirigem e esclarecem. Bastaria isso para nos mostrar a impossibilidade de se transformar
Davis em fundador de um "espiritismo americano", diferente ou contrário ao "espiritismo
europeu". Da mesma maneira, aquilo que chamamos "espiritismo anglo-saxão", em oposição
ao "espiritismo latino", nada mais é que uma fase do desenvolvimento histórico do processo
espírita. Esse imenso processo abrange todo o mundo civilizado, mas tem suas raízes nos
mais remotos períodos da vida pré-civilizada ou pré-histórica. Na verdade, portanto, abrange
a toda a vida humana na terra, desde os seus primórdios.
A revelação espírita, como afirmou Kardec, é progressiva. Até agora desenvolveu-se
por etapas bem definidas, que podemos estudar em seus vários aspectos, nas diversas
regiões do mundo, em diferentes áreas da civilização mundial. Daqui para diante, essas
etapas tendem a fundir-se num todo. O estudo que tentamos fazer, das "antecipações
doutrinárias", ou seja, das formulações de doutrinas espirituais que podem ser consideradas
precursoras do Espiritismo, mostram uma linha evolutiva que se define, através dos
princípios afins e progressivos, num sentido único: o da revelação do mundo espiritual de
maneira positiva e natural. Quer dizer, a revelação de outra face da vida e do mundo, que
não é sobrenatural, mas natural, pois também faz parte da natureza. Essa revelação se
completa em Kardec, mas teve início em Swedenborg e desenvolveu-se amplamente com
Jackson Davis.
4. DAS ANTECIPAÇÕES ÀS CORRELAÇÕES — A revelação do mundo espiritual, em
seu verdadeiro sentido, ou seja, como "o outro lado da vida" ou "a outra face da natureza", só
poderia ser feita, como o demonstrou Kardec em "A Gênese", depois do desenvolvimento
científico. Antes que o homem assumisse o que se pode chamar "uma atitude científica",
diante da natureza, o mundo espiritual só poderia ser encarado como algo misterioso, e
portanto sobrenatural. Ainda em Swedenborg a atitude mística é dominante, e mesmo em
Davis ela impera, não obstante a maior naturalidade com que o mundo espiritual lhe é
apresentado. Entretanto, Swedenborg era um sábio, um homem dedicado a estudos
científicos, o que mostra a dificuldade com que a mente humana se desapega de suas
posições anteriores. Da ciência de Swedenborg, ainda cercada de grandes zonas de
mistério, o mundo teria de avançar mais de um século, para atingir o clima científico
necessário ao advento do Espiritismo.
Assim como a aparição de Elias e Moisés a Jesus, no Tabor, tem um sentido alegórico,
ligando o Messias ao "horizonte profético" e à "lei", ou revelação israelita, assim também a
aparição de Galeno e Swedenborg a Jackson Davis, nas montanhas de Catskill, pode ser
interpretada como uma alegoria. Claudius Galeno, médico e filósofo do século segundo d. C.,
é um representante da ciência antiga, e seu nome se tornou sinônimo da palavra "médico".
Swedenborg, como já vimos, apresenta-se como um profeta moderno, anunciando uma
renascença profética através da prática mediúnica, já agora esclarecida. Ambos transmitem
a Davis a ciência e a profecia, preparando-o como o precursor daquele que virá realizar a
síntese das duas formas de conhecimento: a científica e a profética, ao codificar o
Espiritismo. A alegoria moderna de Catskill assemelha-se, portanto, em sua significação
espiritual e em suas conseqüências históricas, à alegoria evangélica do Tabor. Ambas
anunciam, de maneira semelhante, mas cada qual em sua época e através de seus
elementos próprios, o advento. de dois novos mundos : o cristão e o espírita. E assim como o
mundo cristão era um prolongamento do judaico, o mundo espírita é a continuidade natural e
necessária do cristão, em cujos princípios se fundamenta. Daí a seqüência das três
revelações fundamentais, a que se refere Kardec, em "O Evangelho Segundo o Espiritismo".
Ao nos referirmos a este livro de Kardec, devemos lembrar que ele também tratou de
precursores do Espiritismo, indicando algumas "antecipações doutrinárias". Essas referências
vão bem mais longe do que as nossas, pois Kardec aponta Sócrates e Platão como
os precursores longínquos do Cristianismo e do Espiritismo, chegando a formular um resumo
da doutrina de ambos, para mostrar suas ligações com as novas idéias. Veja-se, a propósito,
a introdução de "O Evangelho Segundo o Espiritismo". Não há duvida que Kardec tinha
razão, ao estabelecer essa ligação dos princípios filosóficos do Espiritismo com os do
Platonismo. Entretanto, quando tratamos das "antecipações doutrinárias" de Swedenborg e
Davis, não ficamos apenas no plano filosófico, mas abrangemos toda a área propriamente
"doutrinária" do Espiritismo, com seus aspectos científico, filosófico e religioso.
As antecipações religiosas e filosóficas do Espiritismo se estendem ao longo de todo o
passado humano. Kardec referiu-se a Sócrates e Platão como a uma poderosa fonte histórica,
de que podia servir-se para reforçar a sua afirmação de que o Espiritismo provém da
mais remota antigüidade. De outras vezes, porém, como vemos no "Livro dos Espíritos", em
artigos publicados na "Revista Espírita", e em vários trechos de outros livros da codificação,
Kardec lembra as ligações do Espiritismo com os mistérios mitológicos dos gregos, as
religiões do Egito e da índia, e particularmente com o Druidismo celta, nas Gálias. Por toda
parte, em todas as épocas, como acentua o codificador, "encontramos as marcas do
Espiritismo". Mas essas marcas, esses sinais ou esses traços, só começam a reunir-se, sob
poderoso impulso mediúnico, com a finalidade clara de constituírem uma nova doutrina, com
as características precisas de uma nova revelação, a partir de Swedenborg, para através de
Davis se definirem melhor, até a sua completa e decisiva formulação na obra de Kardec.
As referências a Sócrates e Platão abrem um campo específico na investigação das
antecipações doutrinárias do Espiritismo, que é o campo dos precedentes filosóficos. Kardec
nos coloca, com essas referências, diante de um vasto panorama a ser investigado, para
descobrirmos aquilo a que poderemos chamar "as raízes filosóficas do Espiritismo". Trabalho
gigantesco terá de ser realizado, a começar das filosofias orientais, passando
demoradamente pelos gregos, onde Sócrates, Platão e o próprio Aristóteles — este,
particularmente, com sua doutrina de forma e matéria — têm muito a oferecer, e seguindo
pela era helenística, até a Idade Média e o Mundo Moderno. O neoplatonismo, a partir de
Plotino, parece-nos um ramo fecundo, e os filões medievais, apesar de todo o peso asfixiante
do seu dogmatismo fideísta, também apresentam valioso material para definição das raízes
filosóficas do Espiritismo.
As antecipações filosóficas mais recentes estão sem dúvida no cartesianismo. O
problema dos sonhos de Descartes, da sua inspiração pelo Espírito da Verdade, da sua
tentativa de criar a Ciência Admirável — a que nos referiremos mais tarde — exige pesquisas
que ainda não puderam ser realizadas no meio espírita, dada a exigüidade de tempo, num
movimento que tem apenas cem anos. Depois de Descartes, é o seu discípulo e continuador
Espinosa quem se apresenta como um verdadeiro precursor filosófico do Espiritismo, a
começar da elaboração de seu livro fundamental, "A Ética", onde são numerosas as
correlações com "O Livro dos Espíritos". Logo mais, a investigação do Hegelianismo e suas
conseqüências não nos parece menos fecunda. Hegel se revela uma espécie de subsolo, em
que as raízes filosóficas do Espiritismo penetram a grandes profundidades, e o próprio Kant,
contemporâneo e testemunha de Swedenborg, oferece-nos amplas possibilidades de
estudos, que se prolongam até os nossos dias, nas correntes do neokantismo.
Saindo, assim, do terreno das antecipações, podemos entrar também no das
correlações; encontrando nos filósofos contemporâneos, entre os quais se destacam, ao que
nos parece, Henri Bergson, Octave Hamelin, Louis Lavelle, Samuel Alexander, Nico!ai
Hartmann, todo o campo do Existencialismo, inclusive o próprio Sartre, possibilidades
imensas de comparação e mesmo de ampliação das investigações espíritas, em diversas
direções. Somente esse trabalho, a ser realizado, poderá mostrar, de maneira decisiva, as
poderosas correlações que fazem do Espiritismo, como o assinalaram Kardec, Léon Denis e
Oliver Lodge, uma síntese histórica e conceptual do conhecimento, destinada a reformar o
mundo.