quinta-feira, 27 de abril de 2017

A INVASÃO ESPIRITUAL ORGANIZADA

O ESPÍRITO E O TEMPO -  CAPÍTULO III

1. O CICLO DO FORMALISMO — Para bem compreendermos o processo de libertação das energias vitais do Cristianismo, através do Espiritismo, precisamos traçar rapidamente o esquema do formalismo cristão. Em primeiro lugar, temos a prédica do Cristo, que, como já vimos, era inteiramente livre de formalismos, realizada nas margens do lago de Genezaré, nas estradas, nas ruas, nas praças e nos pátios do Templo de Jerusalém, ou nas próprias tribunas das sinagogas. Em segundo lugar, a tentativa apostólica de formalizar os ensinos, enquadrando-os no sistema judaico. É o caso da exigência de circuncisão dos novos adeptos, de oferta de sacrifícios no templo, de aplicação do batismo, e assim por diante. Em terceiro lugar, a formalização medieval do Cristianismo, que acabou por se enquadrar na sistemática religiosa das antigas ordens ocultas, por submeter-se aos ritos, ao aparato litúrgico e às formas mágicas (sacramentais) dos cultos pagãos. Em quarto lugar, a libertação do formalismo, iniciada pela Reforma, e que vem completar-se no Espiritismo. 

Esse esquema, limitado ao Cristianismo, enquadra-se num esquema mais amplo, que abrange todo o processo religioso da humanidade, em seus mais variados aspectos. Vejamos esse esquema maior, em sua amplitude universal. Primeiro, temos o mediunismo primitivo, em que as relações entre o homem tribal e os espíritos se processavam de maneira natural, espontânea, sem necessidade de formalidades especiais, pelo surto inevitável da mediunidade entre os selvagens. Depois, temos a formalização rudimentar dessas relações, entre os próprios selvagens, que deram início ao culto dos espíritos, seguindo os preceitos da reverência tribal aos caciques e pagés. Assim, a formalização começou na própria era primitiva, no horizonte tribal. Mas só mais tarde iria tomar aspectos definidos, no processo do desenvolvimento da vida social. 

Partimos, portanto, da liberdade mediúnica da vida tribal, para um segundo estágio, que é o da formalização do culto familial, no horizonte agrícola, com a instituição progressiva do culto dos ancestrais. O terceiro passo é a criação dos sistemas oraculares, no horizonte civilizado, quando o culto dos ancestrais se amplia e se complica, para servir à comunidade, à cidade. O quarto estágio é o da sistematização das grandes religiões, com seu formalismo demasiado complexo, apoiado em complexas formulações teológicas, em minuciosa racionalização teórica. O quinto passo, aquele que estamos dando no momento, através do Espiritismo, é o da volta à liberdade primitiva, com o rompimento dos formalismos religiosos de qualquer espécie. 

Quando o Cristo anunciou, à mulher samaritana, que um dia os verdadeiros adoradores de Deus o adorariam em espírito e verdade, sem necessidade de se dirigirem ao Templo de Jerusalém ou ao Monte Garazin, nada mais fez do que prever a seqüência do desenvolvimento histórico do processo religioso. O Cristo sabia, não em virtude de poderes misteriosos, mas em conseqüência de sua natural elevação espiritual, que a evolução religiosa levaria o homem à libertação dos formalismos asfixiantes do culto exterior. Sabia também, como os grandes filósofos do passado sabiam outras muitas coisas, que o seu próprio ensino seria formalizado, asfixiado nas formas do culto, deturpado, para afinal ser libertado e restabelecido.

Vemos assim que o Espiritismo, ao apresentar-se, na forma de Consolador Prometido, de Espírito da Verdade, de Paráclito anunciado pelo Cristo, não precisa de justificações teológicas ou formais. Sua justificação está no próprio desenvolvimento do processo histórico da evolução religiosa. Conforme ao símbolo hindu da evolução, que a Sociedade Teosófica adotou no seu emblema, — uma cobra em círculo, mordendo a ponta da cauda — o Espiritismo volta à liberdade de relações mediúnicas da era primitiva, enriquecido com a experiência, e o conhecimento das leis espirituais. O que leva os religiosos formalistas a não aceitarem o Espiritismo como o Consolador é o preconceito formal, esse mesmo preconceito que levou os judeus formalistas a rejeitarem o Cristo como Messias. Se esses religiosos conseguissem compreender o processo religioso em sua estrutura cíclica de evolução, não se perderiam em dúvidas de natureza mística, diante de uma realidade natural e historicamente evidente. 

As relações mediúnicas naturais da era primitiva, quando homens e espíritos conviviam na natureza, eram possíveis diante da naturalidade da mente primitiva. Mas a evolução é um processo de enriquecimento. Os homens, ao se civilizarem, complicaram sua mente, perderam-se no dédalo dos raciocínios e das suposições, afastaram-se da naturalidade primitiva. Os espíritos, identificados como seres de outra espécie, assumiram, cada vez mais, papel misterioso no quadro da natureza. Tudo isso era necessário, pois a evolução exige a seqüência de etapas que vimos acima. Uma vez, porém, enriquecida a mente, desenvolvida em seus poderes de abstração e de penetração, o homem pode voltar, com conhecimento das leis naturais, à naturalidade primitiva. É por isso que, no Espiritismo, as relações entre homens e espíritos se processam com naturalidade, livres das complicações já agora inúteis do culto, do formalismo religioso.

2. LIBERTAÇÃO DAS FORÇAS VITAIS — A transmissão da cultura se processa através de fases cíclicas. Primeiro, as forças vitais, as energias criadoras, emanadas do espírito, se projetam nas formas materiais e nelas se condensam. Depois, essas forças se libertam, para enriquecer o espírito. Melhor compreenderemos isto, se tomarmos o exemplo concreto de uma obra literária. As energias criadoras do autor se projetam e se condensam nos capítulos de um livro. O leitor as liberta, ao ler e estudar a obra. As energias libertadas enriquecem o espírito do leitor e poderão sugerir-lhe novas atividades mentais, produzindo a criação de nova obra. Temos assim os ciclos de criação e transmissão da cultura.  

Estudando minuciosamente esse processo, em seu ensaio sobre "As Ciências da Cultura", Ernest Cassirer mostra-nos o exemplo do mundo clássico, cujas forças vitais foram condensadas nas obras da cultura greco-romana e posteriormente libertadas pelo Renascimento, para a fecundação do mundo moderno. A religião, que é um processo cultural, desenvolve-se de acordo com esse mesmo sistema. Quando tratamos, portanto, da libertação das forças vitais do Cristianismo, através do Espiritismo, não estamos inventando nenhuma novidade. Nem foi por outro motivo que Emmanuel classificou o Espiritismo de Renascença Cristã.

As forças vitais do Judaísmo, projetadas e condensadas nas Escrituras e na Tradição Judaica, foram libertadas pelo Cristianismo, que as reelaborou em novas formas de expressão religiosa. Essas novas formas, por sua vez, se projetaram e. condensaram nos Evangelhos e na Tradição Cristã. O Espiritismo as desperta, liberta e renova, para reelaborá- las em novas formas. Entretanto, como as novas formas espirituais devem ser livres, em virtude da evolução humana, elas se apresentam quase irreconhecíveis, perante os cristãos formalistas. A codificação de Allan Kardec é repudiada pelos cristãos, da mesma maneira que a codificação evangélica o foi pelos judeus. 

Esse problema do repúdio das novas formas não é privativo do processo religioso. Em todo o desenvolvimento cultural, ele sempre está presente. É o caso, por exemplo, do repúdio das velhas gerações ao modernismo, às inovações dos hábitos e costumes. É o mesmo caso do repúdio da poesia e da pintura modernas pelos poetas e músicos apegados às formas clássicas. Quando Hegel descreveu a evolução da idéia do Belo através das formas materiais, colocou precisamente esse problema. O poeta Rabindranah Tagore declara, em suas memórias, que espantou-se com as regras do canto no mundo ocidental, por achá-las demasiado livres. Estava habituado à doçura monótona das canções hindus, e repelia os exageros guturais da nossa ópera. 

No processo de desenvolvimento do Cristianismo, o Velho Testamento, as antigas escrituras judaicas, representam a arte oriental do estudo de Hegel. Os Evangelhos são a condensação clássica, equilibrada, das energias vitais do judaísmo, libertas e reelaboradas. A codificação de Allan Kardec é a libertação romântica dos moldes clássicos. Em Kardec, o espírito rompe o equilíbrio clássico dos Evangelhos, para se lançar acima do plano das formas e encontrar o plano da vida. Isso não quer dizer que o Cristo fosse formalista. Pelo contrário, já vimos que todo o seu ensino e toda a sua ação se desenvolveram no plano vital, superando as formas. Acontece que os homens do seu tempo não estavam em condições de entendê-lo, como ele mesmo declarou, e somente na época de Kardec se tornou possível a libertação vital dos seus ensinos

Ao atingir a fase de libertação vital, o Cristianismo volta naturalmente às suas origens. Os ensinos de Cristo, deformados ou velados pela vestimenta formal, retomam a sua vitalidade original. Da mesma maneira por que o Cristo podia confabular com os espíritos no Monte Tabor ou no Horto das Oliveiras, sem a mediação de sacerdotes ou de ritos especiais, os cristãos libertos podem hoje confabular com os seus entes queridos, os seus guias espirituais, e até mesmo com aqueles espíritos ainda perturbados pela própria inferioridade — como o Cristo também o fez — sem nenhuma espécie de ritual ou de formalismo religioso. O processo natural de relações, entre os espíritos e os homens, restabelece-se na atualidade. 

Claro que esse restabelecimento tem de ser repelido pelos que continuam apegados aos sistemas formais do passado. Um cristão que se habituou à idéia da natureza sobrenatural dos espíritos não pode ver, sem horror, a naturalidade das relações mediúnicas. Por outro lado, a concepção do sagrado, alimentada longamente na tradição cristã, em oposição ao profano, faz que os cristãos formalistas se horrorizem com a possibilidade de relações com os mortos. Mesmo algumas pessoas de vasta cultura mostram esse escrúpulo. Thomas Man, o grande escritor alemão, admitiu a realidade do fenômeno de materialização mediúnica, mas entendeu que ele representava uma violação da natureza sagrada da morte. Outros pesquisadores, inclusive cientistas, ao verem que os espíritos podem romper o silêncio sagrado, o mistério do túmulo, abandonaram suas pesquisas. O formalismo religioso tem o seu poder, e o exerce até mesmo sobre aqueles que parecem libertos de preconceitos religiosos. 

Exatamente por isso, o Espiritismo só pôde surgir em meados do século dezenove, depois de amplo desenvolvimento das ciências, que permitiram a criação de um clima mental mais arejado no mundo. As ciências restabeleceram a idéia do natural para todos os fenômenos, libertando os homens do temor do sobrenatural. Os fenômenos espíritas, encarados como naturais, puderam ser estudados em sua verdadeira natureza. Com isso, as forças vitais do Cristianismo, que emergiam da própria naturalidade das relações mediúnicas, puderam ser libertadas.

3. A VOLTA AO NATURAL ─ Partindo do natural, os homens construíram na terra o seu mundo próprio, artificial. O desenvolvimento da inteligência humana, cuja característica é o pensamento produtivo, tinha forçosamente de levar os homens pelos caminhos da abstração mental, e conseqüentemente do formalismo. O mundo humano é feito de convenções. Sempre que essas convenções contrariam as leis naturais, surge o conflito entre o homem e a natureza. Uma das soluções encontradas para esse conflito foi a concepção do sobrenatural. Graças a ela, os homens puderam manter-se ilusoriamente seguros no seu mundo convencional. Mas a finalidade do convencionalismo, e conseqüentemente do formalismo, não é distanciar o homem da natureza, e sim facilitar a sua adaptação a ela. Por isso, mais hoje, mais amanhã, o homem teria de voltar ao natural, destruindo pouco a pouco os excessos de convencionalismo, os exageros perniciosos do seu artificialismo. 

O sobrenatural não é, como querem os filósofos materialistas, uma fuga ao real, mas apenas uma deturpação do natural. Os espíritos não foram inventados, como já vimos em estudos anteriores. Quando os homens primitivos encontravam nas selvas os fantasmas de seus antepassados, não estavam sonhando, nem sofrendo alucinações, e muito menos formulando abstrações que suas mentes rudimentares ainda não comportavam. O que acontecia era bem mais simples, como simples sempre são os processos da natureza. Eles apenas se defrontavam com espíritos, que vinham a eles sem a interferência de práticas mágicas ou de ritos sacerdotais, por força das leis da natureza. 

Temos na Idade Média a fase mais aguda de artificialização da vida humana. E isso tanto vale para o medievalismo europeu, quanto para os demais. Nem é por outro motivo que se considera a Idade Média a fase oriental do Ocidente. Porque as grandes civilizações orientais foram também o resultado de condensações do formalismo. De tal maneira o formalismo europeu se condensou no período medieval, que o sobrenatural se transformou em instrumento de poder absoluto, nas mãos das classes sacerdotais e aristocráticas. O clérigo e o nobre dispunham do poder mágico dos símbolos, e dominavam o mundo. Os espíritos se tornaram propriedade das classes dominantes, e as classes inferiores sofreram a asfixia espiritual do poder convencional. Toda manifestação espiritual ocorrida entre o povo estava condenada. Os médiuns eram bruxos e deviam ser torturados ou queimados. 

Os excessos do formalismo, tanto social como religioso, teriam de chegar, como realmente chegaram, a um ponto máximo de condensação. E quando atingiram esse ponto, como acontece com os minerais radioativos, começaram a libertar as próprias energias. Estão em erro aqueles que pensam que as comunicações mediúnicas só ocorreram de maneira intensa em meados do século dezenove, dando origem ao Espiritismo. Talvez tenham ocorrido em maior número na Idade Média. Os espíritos se manifestavam por toda parte, provocando os horrorosos processos contra os bruxos, de que os arquivos da justiça eclesiástica estão cheios. Asfixiada a mediunidade natural, pela proibição clerical, pela condenação das autoridades e da Igreja, os médiuns eram dominados por entidades rebeldes, que desejavam, a todo custo, romper o círculo de ferro das proibições. A mediunidade irradiava por si mesma, na crosta mineral das condensações do formalismo. As celas dos conventos e dos mosteiros se transformaram em câmaras mediúnicas, que antecipavam as câmaras de tortura.

Conan Doyle entendeu que se tratava de "casos esporádicos, de extraviados de uma esfera qualquer". Espíritos extraviados, que mergulhavam na terra e provocavam as tragédias mediúnicas. Na verdade, não eram extraviados, mas espíritos apegados à terra, ligados à vida humana, sintonizados com a esfera dos homens, e que legitimamente reivindicavam o seu direito de comunicação. As leis naturais reagiam contra o artificialismo das convenções religiosas. Quanto mais se queimavam os bruxos, mais eles surgiam, no próprio seio das ordens religiosas. Tornou-se necessário admitir-se a realidade de algumas visões, de algumas comunicações, e intensificar-se a aplicação do exorcismo, para afastar os demô- nios dos conventos, evitando a ceifa exagerada de vidas humanas. Mas isso não impediu que os demônios intensificassem suas manifestações, ostensivas ou ocultas, gerando as numerosas formas de heresias que a inquisição teve de liquidar a ferro e fogo, num desmentido flagrante aos ensinos cristãos de fraternidade universal.

Os próprios horrores da luta formalista contra a natureza deveriam, entretanto, provocar as reações libertárias que se acentuariam nos fins da Idade Média, abrindo perspectivas para o mundo moderno. Os homens teriam de reconhecer os exageros de seu artificialismo, e buscar novamente a natureza. Nessa busca, poderiam desviar-se para outro extremo, entregando-se excessivamente à natureza exterior, esquecidos de sua própria natureza interior, a humana ou espiritual. Foi praticamente o que se deu no mundo moderno, com os exageros cientificistas em que ainda nos perdemos. Para corrigir um exagero, entretanto, era necessário o outro. Somente o desenvolvimento científico, segundo assinala Kardec em "A Gênese", poderia libertar a mente humana dos fantasmas teológicos e prepará-la para enfrentar de maneira positiva a realidade da sobrevivência humana, em sua simplicidade natural. 

 A volta à natureza começou pelo exterior, no campo dos fenômenos. A investigação científica mostrou o absurdo dos convencionalismos dominantes, fulminou as superstições seculares. O século dezoito, considerado o século de ouro da ciência, já prenunciava o advento do Espiritismo. Um nobre sueco, Swedenborg, um dos homens mais sábios da época, desenvolveu a própria mediunidade, e o romancista Honoré De Balzac, muito antes da codificação, tornou-se médium curador ou médium "passista", como hoje dizemos. Os espíritos já não eram encarados como deuses ou demônios, mas como seres humanos desprovidos de corpo material.

4. UMA INVASÃO ORGANIZADA — A volta do homem à natureza, após o domínio do convencionalismo medieval, começou pelo exterior, mas tinha de atingir o interior. A observação dos fenômenos físicos, revelando as leis do mundo material, levaria necessariamente ao encontro dos fenômenos psíquicos. O caso das Irmãs Fox, em Hydesville, EE. UU., oferece-nos um exemplo típico desse processo. Primeiro, os "raps", os sinais físicos, materiais, que suscitaram a atenção e a investigação de curiosos e homens de cultura. Depois, o intercâmbio, através dos sinais físicos, com as entidades psíquicas que os provocavam. Desde bem antes de Hydesville, os espíritos já vinham provocando preocupa- ções em toda parte. Ernesto Bozzano conta o caso de Jonathan Koons, que construiu no quintal de sua casa uma câmara espírita. Ao contrário das celas conventuais, esta câmara não antecipava nenhuma tortura. Construída na América, filha da Reforma, em ambiente livre, a câmara espírita de Koons prenunciava o advento de uma nova era.

Comparando as ocorrências mediúnicas da Idade Média com as dos séculos dezoito e dezenove, Conan Doyle chama á estas últimas de "uma invasão organizada". No período medieval, e mesmo depois, as manifestações não seguiam uma diretriz segura. Os médiuns foram sacrificados aos milhares, inutilmente. Daí sua conclusão de que eram espíritos "extraviados de uma esfera qualquer'". Nos dois últimos séculos, pelo contrário, as manifestações parecem seguir um grande plano, articuladas entre si. De Swedenborg, cuja mediunidade se desenvolve em 1744, a Edward Irving, o pastor escocês, em cuja igreja se verifica, em 1831, um surto alarmante do dom de línguas, até o episódio curioso dos "shakers", na Califórnia, em 1837, e depois o caso de Hydesville, há toda uma seqüência de manifestações, que prepararam o advento do Espiritismo. Conan Doyle chega mesmo a notar que a invasão é precedida dos "batedores", das patrulhas de reconhecimento ou de preparação do terreno.

O caso dos "shakers" justifica essa tese. Eram emigrados ingleses de uma seita protestante, que se localizaram na Califórnia. Nada menos de sessenta grupos, formando um grande acampamento, que em 1837 foram surpreendidos por uma invasão de espíritos. Estes penetravam nas casas e se apossavam dos médiuns, promovendo ruidosas manifestações, que duraram sete anos consecutivos. Manifestavam-se como índios pelevermelha, e enquanto demonstravam aos "shakers" a possibilidade do intercâmbio com o mundo espiritual, eram por estes evangelizados. Entre os "shakers" havia um homem culto, Mr. Elder Evans, que relatou os fatos. Certo dia, os índios anunciaram que iam partir. Despediram-se, advertindo que voltariam mais tarde "para uma invasão do mundo". Quatro anos depois, em 1848, ocorriam as manifestações de Hydesville, com as Irmãs Fox. Os índios haviam dito a Mr. Evans que fosse até lá, e o pastor obedeceu, estabelecendo assim a ligação terrena entre os dois fatos espirituais.

Mais curioso ainda o que aconteceu com outro precursor do Espiritismo nos Estados Unidos, André Jackson Davis, cuja mediunidade se desenvolveu em 1844. Conan Doyle, comentando o fato, e referindo-se às obras de Davis, que ainda hoje constituem um roteiro para os espíritas norte-americanos, acentua: "Ele começou a preparar o terreno, antes que se iniciasse a revelação." A 31 de março de 1848, Davis escreveu no seu diário: "Esta madrugada um sopro quente passou pela minha face e ouvi uma voz suave e forte dizer: Irmão, um bom trabalho foi começado. Olha, surgiu uma demonstração viva! — Fiquei pensando o que queria dizer essa mensagem." Ora, exatamente nessa madrugada come- çavam os fenômenos da casa da família Fox, com as filhas do metodista John Fox, que marcariam o início das investigações espíritas no mundo. 

Como se vê, a tese da "invasão organizada" não é gratuita. Tem bom fundamento histórico, e poderíamos dizer,bom fundamento profético, ou mediúnico. Os "batedores", ou batalhões de reconhecimento, realizaram primeiramente suas incursões, preparando terreno. Os anunciadores, como Emmanuel Swdenborg, Edward Irving, Jackson Davis, realizaram o papel dos profetas bíblicos. E Davis, particularmente, o de João Batista, o precursor, anunciando o advento do Consolador. A seguir, a invasão organizada realizou-se com pleno êxito, sacudindo a terra de um extremo a outro, durante dez anos. De 1848 a 1858, os fenômenos mediúnicos agitaram o mundo, provocando a atenção dos sábios e aturdindo os teólogos. Em 1854, o Prof. Hypollite Léon Denizart Rivail tinha a sua atenção despertada para as mesas-girantes, que então pululavam em Paris e em toda a França. E em 1857 já dava a público a obra fundamental da codificação espírita, "O Livro dos Espíritos", alicerce inabalável da nova revelação, obra básica do Espiritismo. 

Mais tarde, em 1868, ao publicar "A Gênese", o Prof. Rivail, já então Allan Kardec, diria: "Importante revelação se processa na época atual e nos mostra a possibilidade de nos comunicarmos com os seres do mundo espiritual. Não é novo, sem dúvida, esse conhecimento, mas ficara até os nossos dias, de certo modo, como letra morta, isto é, sem proveito para a humanidade. A ignorância das leis que regem essas relações o abafara sob a superstição. O homem era incapaz de tirar, desses fatos, qualquer dedução salutar. Estava reservado à nossa época desembaraçá-los dos acessórios ridículos, compreender-lhes o alcance, e fazer surgir a luz destinada a clarear o caminho do futuro." ("A Gênese", Cap. I, vers. 11.) 

Já nessa época a invasão organizada triunfara plenamente. O mundo conhecia uma nova doutrina, que oferecia aos homens o caminho de retorno à espiritualidade. 

CAPÍTULO IV - ANTECIPAÇÕES DOUTRINÁRIAS 

1. A NEBULOSA DE SWEDENBORG — O Espiritismo formou-se, como uma estrela, no seio de uma nebulosa. É parte de uma verdadeira galáxia, que se estende pelo infinito, a partir dos mundos inferiores, até os mais elevados. Certamente, nos perderíamos, se quiséssemos examinar toda a extensão da galáxia, toda a complexidade de doutrinas e teorias que precederam o Espiritismo. Somos forçados, por isso mesmo, a limitar a nossa ambição, procurando o foco mais próximo da sua elaboração. Esse foco, segundo o entendeu Conan Doyle, é a doutrina de Emmanuel Swedenborg. Uma verdadeira nebulosa doutrinária, em que os elementos em fusão nos aturdem, mas de cujo seio partem os primeiros raios, nítidos e incisivos, de uma nova concepção da vida e do mundo.

Ao tratar dos fatos que provocaram o desencadear do movimento espírita, Conan Doyle referiu-se aos "batedores" ou às "patrulhas de vanguarda", que prepararam o terreno para a "invasão espiritual organizada" do nosso mundo. Do ponto de vista doutrinário, encontramos também os "batedores" ou preparadores do terreno. O primeiro deles, que realmente se abalança a elaborar uma doutrina, estribado em sua fabulosa cultura e sua poderosa inteligência, é Swedenborg. Conan Doyle o chama de "pai do nosso novo conhecimento dos fenômenos sobrenaturais". Tendo sido um dos homens mais cultos da sua época, dotado de grande inteligência e de mediunidade polimorfa, esse vidente sueco antecipou, de maneira confusa, a elaboração da Doutrina dos Espíritos.  

Ao contrário de Kardec, que começou pela. observação científica dos fenômenos mediúnicos, Swedenborg se inicia como um antigo profeta, recebendo uma revelação divina. Foi em abril de 1744, em Londres, que a revelação se verificou. Não obstante a natureza física do primeiro fenômeno por ele descrito, com evidente emanação de ectoplasma, não foi esse aspecto o que lhe interessou. Outro, mais importante, lhe chamava a atenção, e ele mesmo o descreveu com as seguintes palavras: "Uma noite o mundo dos espíritos, céu e inferno, se abriu para mim, e nele encontrei várias pessoas conhecidas, em diferentes condições. Desde então o Senhor abria diariamente os olhos do meu espírito para que eu visse, em perfeito estado de vigília, o que se passava no outro mundo, e pudesse conversar, em plena consciência, com os anjos e os espíritos."

A atitude profética de Swedenborg é indiscutível. Diante dos fenômenos, esse homem extraordinário, dotado de vastos conhecimentos em física, química, astronomia, zoologia, anatomia, metalurgia e economia, além de outros ramos das ciências pelos quais se interessava, não se coloca em posição de crítica e observação, mas de passiva aceitação. Considera-se eleito para uma missão espiritual, senhor de uma revelação pessoal, e portanto incumbido, como Moisés ou Maomé, de ensinar enfática e dogmaticamente o que lhe era revelado. Atitude completamente diversa da assumida por Kardec, que não se julgava um profeta, mas um pesquisador, um rigoroso observador dos fatos, dos quais devia racionalmente deduzir a necessária interpretação.

A primeira elaboração teórica de Swedenborg não foi, portanto, filosófica nem científica, mas teológica. Chegou a construir urna complicada interpretação da Bíblia, através de um sistema de símbolos, dizendo-se o único detentor da verdade escriturística, que penetrava com o auxílio dos anjos. Essa pretensão o levou naturalmente à convicção da infalibilidade. Suas explicações deviam ser aceitas como lições indiscutíveis. Swedenborg via o mundo espiritual, conversava com os espíritos, recebia instruções diretas, e por isso se julgava capaz de tudo explicar, sem maiores preocupações. Tornou-se um místico, distanciado da experiência científica a que se dedicava anteriormente.

Essa curiosa posição de Swedenborg o transforma num elo entre dois períodos da evolução espiritual do homem. De um lado, temos o horizonte profético, carregado de misticismo, impondo-lhe o seu peso. De outro lado, o horizonte civilizado, que lhe abre suas perspectivas, em direção ao horizonte espiritual. O vidente sueco permanece nos limites desses dois mundos. Através da sua teologia, firma-se no passado, e através de sua doutrina das esferas, que formulará a seguir, projeta-se ao futuro. Escrevia em latim os seus livros complicados, mas, apesar disso, apresentava uma visão nova do problema espiritual. Não se contentou em formular uma doutrina, e fundou urna religião, apoiada nas seguintes obras: "De Caelo et Inferno exauditis et visis", Nova Jerusalém" e "Arcana Caelestia".  

O que faz Swedenborg um precursor doutrinário cio Espiritismo é a sua posição em face do mundo espiritual, que ele considera de maneira quase positiva. Após a morte, os homens vão para esse mundo, e não são julgados por tribunais, mas por uma lei que determina as condições em que passarão a viver, em planos superiores ou inferiores, nas diferentes "esferas" da espiritualidade. Anjos e demônios nada mais eram, para ele, do que seres humanos desencarnados, em diferentes fases de evolução. Suas descrições do mundo espiritual assemelham-se bastante às que encontramos nas comunicações dadas a Kardec ou recebidas atualmente pelos nossos médiuns. O Inferno não era lugar de castigo eterno, mas plano inferior, de que os espíritos podiam subir para os mais elevados, purificando-se. A terra, um mundo de depuração espiritual.

Uma importante lição devemos tirar, entretanto, da vida e da obra de Swedenborg: a de que o Espiritismo está certo ao condenar a formulação de teorias pessoais pelos videntes, e encarecer a necessidade da metodologia científica, para verificação da verdade espiritual. Swedenborg foi o último dos reveladores pessoais, e abriu perspectivas para a nova era, que devia surgir com Kardec. Não é a sua interpretação dos fatos o que vale em sua obra, mas os próprios fatos, posteriormente confirmados pela observação e a experimentação espiríticas, oferecendo aos homens uma concepção nova da vida presente e da vida futura.

2. RESTOS DE NEBULOSA — Considerando a doutrina de Swedenborg como uma nebulosa, na qual encontramos a solidificação de um pequeno núcleo, que pode ser tomado como uma antecipação da Doutrina dos Espíritos, não devemos esquecer-nos de que aquela nebulosa fazia parte de um vasto sistema, de toda uma galáxia. Podemos dizer que na imensa galáxia das doutrinas espiritualistas, que se estendem ao longo da evolução espiritual do homem, a nebulosa de Swedenborg marca o primeiro momento da condensação, para que possa formar-se a estrela do Espiritismo, no mundo moderno. Formada a estrela, entretanto, a nebulosa não desaparece. Continuam no espaço os seus restos, muitas vezes empanando o próprio brilho da estrela nascente. 

Ninguém explicou melhor esse processo do que Allan Kardec, no primeiro tópico da "Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita", ao lançar a palavra Espiritismo, como o neologismo francês que passaria a designar a nova concepção do mundo. De maneira sintética, esclarece o codifica-dor: "Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a Doutrina Espírita; como generalidade, liga-se ao Espiritismo, do qual apresenta uma das fases." Essa fase é precisamente a que apontamos acima, como a de consolidação de uma estrela, de um núcleo positivo de espiritualismo, no seio da imensa nebulosa.

O que faz do Espiritualismo urna galáxia de nebulosas, é a sua própria origem, as condições históricas do seu aparecimento e desenvolvimento. Do homem primitivo ao homem civilizado há toda uma gradação intelectual, moral e psíquica, assinalando os sucessivos aumentos de capacidade de compreensão do espírito humano. As doutrinas espiritualistas, indispensáveis à evolução espiritual, e formando, mesmo, parte dessa evolução, apresentam as características dos diversos períodos em que surgiram. Quanto mais próximas do mundo primitivo, mais confusas, carregadas de animismo, fetichismo e magia. Quanto mais aproximadas do mundo civilizado, avançando para o horizonte espiritual, mais racionalizadas, com disciplinação racional dos próprios resíduos mágicos. 

As mais vigorosas .dessas doutrinas são as que provêm do horizonte-profético, ligadas ao processo das profecias ou revelações pessoais, e que resultaram nas chamadas religiões positivas do horizonte-civilizado. O caráter pessoal dessas doutrinas, seu sentido explicativo, sua função didática, conferem-lhes o tom dogmático, que as torna inadequadas na era científica. Essa inadequação ocasionou o desprestígio do Espiritualismo, 'que o progresso das ciências relegou ao plano das superstições. Diante da "clareza .e distinção" cartesianas das ciências, a confusão e o dogmatismo das religiões e das doutrinas ocultistas, bem como as suas cargas hereditárias de fetichismo e magia, tornavam o Espiritualismo, perante as elites culturais, um simples amontoado de resíduos primitivos.  

O Espiritismo representa o momento em que o Espiritualismo, superando as fases mágicas do seu desenvolvimento, atinge o plano da razão, define-se num esquema cartesiano de "idéias claras e distintas". É a isso que chamamos a estrela que saiu da nebulosa. Kardec explica, em "A Gênese", que o Espiritismo tem, "por objeto especial, o conhecimento das leis do princípio espiritual". E acrescenta: "Como meio de elaboração, o Espiritismo se utiliza, como as ciências positivas, do método experimental." Essa atitude permitiu-lhe, ainda segundo expressões do codificador: "enfrentar o materialismo no seu próprio terreno e com as suas mesmas armas". Foi, portanto, o Espiritismo, como doutrina moderna e de espírito eminentemente científico, o processo de restauração do prestígio perdido do Espiritualismo, diante do avanço das Ciências.

Poucos adeptos do Espiritismo, ainda hoje, apesar dos ensinos, das explicações e das advertências de Kardec a respeito, compreendem essa posição da doutrina. Por isso, muitos adeptos se deixam empolgar pelos restos de nebulosa que ainda procuram empanar o brilhoda doutrina, através de comunicações mediúnicas de teor profético, muitas vezes tipicamente apocalítico, que surgem a todo instante no movimento doutrinário. É natural o aparecimento constante e insistente dessas pretensas reformulações doutrinárias. Elas correspondem à permanência, determinada pela lei de inércia, de mentes encarnadas e desencarnadas, no plano do pensamento mágico do passado. Essas mentes se sintonizam no processo de comunicação mediúnica, repetindo inadequadamente, em nossa época, os processos "reveladores" do horizonte-profético. 

As "verdades novas" que essas comunicações mirabolantes pretendem transmitir, são aquelas mesmas afirmações dogmáticas que causaram o desprestígio do Espiritualismo no passado. Nada têm de novo, portanto. Pelo contrário, carreiam apenas o ranço do antigo profetismo, carregado de magia e misticismo. De certa maneira, e às vezes, mesmo, de maneira direta, são resíduos da Nebulosa de Swedenborg, ainda capazes de fascinar os adeptos que não se contentam com a chamada "frieza científica" do Espiritismo. Seria bom lembrarmos a esses adeptos que essa "frieza" não é suficientemente fria para ser aprovada pelos cientistas, que não se cansam de condenar a "crendice" e o "religiosismo" da ciência espírita. Como se vê, essa ambivalência da posição doutrinária, acusada ao mesmo tempo pelo passado e pelo presente, confirma a sua natureza de marco divisório na evolução do Espiritualismo e de momento de síntese no processo do conhecimento. 

Como estrela que surgiu da nebulosa, o Espiritismo não pode conter os elementos infusos daquela. Atentemos para estas palavras de Kardec, ainda do primeiro capítulo de "A Gênese", para compreendermos melhor a natureza do Espiritismo: "Fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas. Ele os observa, compara, analisa, e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz as suas conseqüências e busca as suas aplicações úteis." Meditando sobre estas palavras, o estudante compreenderá a razão porque o Espiritismo não pode endossar as comunicações mirabolantes, que o fariam retroceder ao seio da. nebulosa, tirando-lhe a força e o prestígio que o sustentam no mundo atual, como um reduto espiritualista que desafia e repele o materialismo, no mesmo terreno em que este opera, e com as suas próprias armas. 

3. O PRECURSOR AMERICANO — Considerando a obra de Swedenborg como uma antecipação doutrinária .do Espiritismo, — no seu aspecto histórico, e como "nebulosa doutrinária", segundo já acentuamos — temos de estabelecer uma ligação entre ela e a obra do médium norte-americano Andrew Jackson Davis. Enquanto Swdenborg era um sábio, Davis era semi-analfabeto, e além do mais, "fraco de corpo e mentalmente pobre", como assinala Conan Doyle. Apesar dessa contradição, Davis foi o continuador de Swedenborg e o precursor americano do Espiritismo. E esse fato é tanto mais importante, exatamente pela contradição que encerra. Ela demonstra, com absoluta clareza, que o espírito domina a matéria, e que o próprio conceito científico de paralelismo psico-fisiológico fica abalado, diante do impacto das manifestações espíritas.  

Andrew Jackson Davis está distanciado de Emmanuel Swedenborg não apenas no espaço e no plano mental. Há entre eles a distância exata de um século, e além dessa distância temporal, também a que já assinalamos no plano da cultura intelectual. Em relação ao tempo, há esta curiosidade a anotar: Swedenborg desenvolve seus poderes mediúnicos em abril de 1744, e Davis em março de 1844. De um a outro, saltamos exatamente de meados do século dezoito a meados do dezenove. Mas não damos o salto sozinhos, porque o espírito de Swedenborg nos acompanha. Realmente, na tarde de 6 de março de 1844, Davis é arrebatado, em estado de transe mediúnico, para as montanhas de Catskill, a cerca de quarenta milhas de sua casa, na cidadezinha de Poughkeepsie, para receber instruções espirituais. Quem são os instrutores? Um deles é Galeno, o médico grego, e o outro é Swedenborg, segundo declara Davis em sua auto-biografia. Como vemos, um curioso episódio, que repete na América o encontro do Messias, no Tabor, com os espíritos de Elias e Moisés.

Mas Davis não está ligado apenas a Swedenborg. Ele se apresenta, na História do Espiritismo, como um poderoso elo mediúnico, que sustenta a unidade do processo doutrinário. No passado, ele se liga com o vidente sueco, mas no futuro vai ligar-se com as irmãs.Fox e Kardec. Quatro anos depois do encontro com Swedenborg, vemo-lo escrever no seu diário as anotações referentes à voz que lhe anuncia os fatos de Hydesville. Ora, como estes fatos se ligam diretamente ao trabalho de Kardec, Davis também se liga a esse trabalho. A falta de visão de conjunto tem levado muitas pessoas a considerarem Davis um caso à parte. Chegou-se mesmo a propor a tese da existência de um "espiritismo americano", iniciado por Davis, em oposição ao "espiritismo europeu" de Allan Kardec. Mas os fatos históricos e as ligações mediúnicas são de tal ordem, que todas essas proposições nasceram condenadas ao olvido. A unidade do processo histórico se evidencia nas poderosas ligações espirituais dos fatos mediúnicos. Davis é um elo, jamais um caso isolado, pois a humanidade é una, e a fase das revelações parciais já ficou muito para trás. 

A série de livros de Davis, intitulada "Filosofia Harmônica", teve mais de quarenta edições nos Estados Unidos. A esta série seguiu-se, nos anos finais da vida de Davis, a das "Revelações Divinas da Natureza". Num dos seus livros, intitulado "Princípios da Natureza", ele prevê o aparecimento do Espiritismo, como. doutrina e prática mediúnica.' Depois de acentuar que as comunicações espirituais se generalizarão, declara : "Não decorrerá muito tempo para que essa verdade seja demonstrada de maneira viva. E o mundo saudará alegremente o alvorecer dessa era, enquanto o íntimo dos homens se abrirá, para estabelecer a comunicação espiritual, como a desfrutam os habitantes de Marte, Júpiter e Saturno." Além dessas previsões, Davis desenvolve a doutrina de Swedenborg, estendendo os seus princípios nos rumos da próxima codificação. O mundo espiritual se lhe apresenta com a mesma nitidez com que o vidente sueco o descrevia, e sujeito às mesmas leis de evolução que o Espiritismo afirmará mais tarde.

Ninguém melhor do que Conan Doyle para estabelecer a medida em que Davis avança sobre Swedenborg, caminhando decisivamente em direção de Kardec. Vejamos o que diz o grande escritor: "Davis tinha avançado além de Swedenborg, embora não dispusesse do equipamento mental deste, para abranger todo o alcance da mensagem. Swedenborg vira o céu e o inferno, como Davis também os vira e minuciosamente os descrevera. Mas Swedenborg não tivera uma visão clara da situação dos mortos e .da verdadeira natureza do mundo espiritual, com a possibilidade de retorno, como ao vidente americano foi revelado. Esse conhecimento foi dado a Davis lentamente." Acrescenta Conan Doyle que, ao se considerarem alguns fatos da vida de Davis, que são inegáveis, pode-se admitir o controle de Swedenborg sobre ele. Controle de um Swedenborg evoluído, que vivera um século a mais, na vida espiritual, o que justifica o avanço de Davis sobre a doutrina daquele.  

A posição de Davis se esclarece por si mesma. É o próprio Davis quem se coloca no limiar daquilo que podemos chamar a "era espírita", ou, dentro da terminologia que adotamos, o "horizonte espiritual". Ele não se arroga o título de "Messias", mas reconhece, pelo contrário, a sua condição de instrumento mediúnico, a serviço de espíritos superiores, que o dirigem e esclarecem. Bastaria isso para nos mostrar a impossibilidade de se transformar Davis em fundador de um "espiritismo americano", diferente ou contrário ao "espiritismo europeu". Da mesma maneira, aquilo que chamamos "espiritismo anglo-saxão", em oposição ao "espiritismo latino", nada mais é que uma fase do desenvolvimento histórico do processo espírita. Esse imenso processo abrange todo o mundo civilizado, mas tem suas raízes nos mais remotos períodos da vida pré-civilizada ou pré-histórica. Na verdade, portanto, abrange a toda a vida humana na terra, desde os seus primórdios.

A revelação espírita, como afirmou Kardec, é progressiva. Até agora desenvolveu-se por etapas bem definidas, que podemos estudar em seus vários aspectos, nas diversas regiões do mundo, em diferentes áreas da civilização mundial. Daqui para diante, essas etapas tendem a fundir-se num todo. O estudo que tentamos fazer, das "antecipações doutrinárias", ou seja, das formulações de doutrinas espirituais que podem ser consideradas precursoras do Espiritismo, mostram uma linha evolutiva que se define, através dos princípios afins e progressivos, num sentido único: o da revelação do mundo espiritual de maneira positiva e natural. Quer dizer, a revelação de outra face da vida e do mundo, que não é sobrenatural, mas natural, pois também faz parte da natureza. Essa revelação se completa em Kardec, mas teve início em Swedenborg e desenvolveu-se amplamente com Jackson Davis. 

4. DAS ANTECIPAÇÕES ÀS CORRELAÇÕES — A revelação do mundo espiritual, em seu verdadeiro sentido, ou seja, como "o outro lado da vida" ou "a outra face da natureza", só poderia ser feita, como o demonstrou Kardec em "A Gênese", depois do desenvolvimento científico. Antes que o homem assumisse o que se pode chamar "uma atitude científica", diante da natureza, o mundo espiritual só poderia ser encarado como algo misterioso, e portanto sobrenatural. Ainda em Swedenborg a atitude mística é dominante, e mesmo em Davis ela impera, não obstante a maior naturalidade com que o mundo espiritual lhe é apresentado. Entretanto, Swedenborg era um sábio, um homem dedicado a estudos científicos, o que mostra a dificuldade com que a mente humana se desapega de suas posições anteriores. Da ciência de Swedenborg, ainda cercada de grandes zonas de mistério, o mundo teria de avançar mais de um século, para atingir o clima científico necessário ao advento do Espiritismo. 

Assim como a aparição de Elias e Moisés a Jesus, no Tabor, tem um sentido alegórico, ligando o Messias ao "horizonte profético" e à "lei", ou revelação israelita, assim também a aparição de Galeno e Swedenborg a Jackson Davis, nas montanhas de Catskill, pode ser interpretada como uma alegoria. Claudius Galeno, médico e filósofo do século segundo d. C., é um representante da ciência antiga, e seu nome se tornou sinônimo da palavra "médico". Swedenborg, como já vimos, apresenta-se como um profeta moderno, anunciando uma renascença profética através da prática mediúnica, já agora esclarecida. Ambos transmitem a Davis a ciência e a profecia, preparando-o como o precursor daquele que virá realizar a síntese das duas formas de conhecimento: a científica e a profética, ao codificar o Espiritismo. A alegoria moderna de Catskill assemelha-se, portanto, em sua significação espiritual e em suas conseqüências históricas, à alegoria evangélica do Tabor. Ambas anunciam, de maneira semelhante, mas cada qual em sua época e através de seus elementos próprios, o advento. de dois novos mundos : o cristão e o espírita. E assim como o mundo cristão era um prolongamento do judaico, o mundo espírita é a continuidade natural e necessária do cristão, em cujos princípios se fundamenta. Daí a seqüência das três revelações fundamentais, a que se refere Kardec, em "O Evangelho Segundo o Espiritismo". 

Ao nos referirmos a este livro de Kardec, devemos lembrar que ele também tratou de precursores do Espiritismo, indicando algumas "antecipações doutrinárias". Essas referências vão bem mais longe do que as nossas, pois Kardec aponta Sócrates e Platão como os precursores longínquos do Cristianismo e do Espiritismo, chegando a formular um resumo da doutrina de ambos, para mostrar suas ligações com as novas idéias. Veja-se, a propósito, a introdução de "O Evangelho Segundo o Espiritismo". Não há duvida que Kardec tinha razão, ao estabelecer essa ligação dos princípios filosóficos do Espiritismo com os do Platonismo. Entretanto, quando tratamos das "antecipações doutrinárias" de Swedenborg e Davis, não ficamos apenas no plano filosófico, mas abrangemos toda a área propriamente "doutrinária" do Espiritismo, com seus aspectos científico, filosófico e religioso. 

As antecipações religiosas e filosóficas do Espiritismo se estendem ao longo de todo o passado humano. Kardec referiu-se a Sócrates e Platão como a uma poderosa fonte histórica, de que podia servir-se para reforçar a sua afirmação de que o Espiritismo provém da mais remota antigüidade. De outras vezes, porém, como vemos no "Livro dos Espíritos", em artigos publicados na "Revista Espírita", e em vários trechos de outros livros da codificação, Kardec lembra as ligações do Espiritismo com os mistérios mitológicos dos gregos, as religiões do Egito e da índia, e particularmente com o Druidismo celta, nas Gálias. Por toda parte, em todas as épocas, como acentua o codificador, "encontramos as marcas do Espiritismo". Mas essas marcas, esses sinais ou esses traços, só começam a reunir-se, sob poderoso impulso mediúnico, com a finalidade clara de constituírem uma nova doutrina, com as características precisas de uma nova revelação, a partir de Swedenborg, para através de Davis se definirem melhor, até a sua completa e decisiva formulação na obra de Kardec. 

As referências a Sócrates e Platão abrem um campo específico na investigação das antecipações doutrinárias do Espiritismo, que é o campo dos precedentes filosóficos. Kardec nos coloca, com essas referências, diante de um vasto panorama a ser investigado, para descobrirmos aquilo a que poderemos chamar "as raízes filosóficas do Espiritismo". Trabalho gigantesco terá de ser realizado, a começar das filosofias orientais, passando demoradamente pelos gregos, onde Sócrates, Platão e o próprio Aristóteles — este, particularmente, com sua doutrina de forma e matéria — têm muito a oferecer, e seguindo pela era helenística, até a Idade Média e o Mundo Moderno. O neoplatonismo, a partir de Plotino, parece-nos um ramo fecundo, e os filões medievais, apesar de todo o peso asfixiante do seu dogmatismo fideísta, também apresentam valioso material para definição das raízes filosóficas do Espiritismo.  

As antecipações filosóficas mais recentes estão sem dúvida no cartesianismo. O problema dos sonhos de Descartes, da sua inspiração pelo Espírito da Verdade, da sua tentativa de criar a Ciência Admirável — a que nos referiremos mais tarde — exige pesquisas que ainda não puderam ser realizadas no meio espírita, dada a exigüidade de tempo, num movimento que tem apenas cem anos. Depois de Descartes, é o seu discípulo e continuador Espinosa quem se apresenta como um verdadeiro precursor filosófico do Espiritismo, a começar da elaboração de seu livro fundamental, "A Ética", onde são numerosas as correlações com "O Livro dos Espíritos". Logo mais, a investigação do Hegelianismo e suas conseqüências não nos parece menos fecunda. Hegel se revela uma espécie de subsolo, em que as raízes filosóficas do Espiritismo penetram a grandes profundidades, e o próprio Kant, contemporâneo e testemunha de Swedenborg, oferece-nos amplas possibilidades de estudos, que se prolongam até os nossos dias, nas correntes do neokantismo.

Saindo, assim, do terreno das antecipações, podemos entrar também no das correlações; encontrando nos filósofos contemporâneos, entre os quais se destacam, ao que nos parece, Henri Bergson, Octave Hamelin, Louis Lavelle, Samuel Alexander, Nico!ai Hartmann, todo o campo do Existencialismo, inclusive o próprio Sartre, possibilidades imensas de comparação e mesmo de ampliação das investigações espíritas, em diversas direções. Somente esse trabalho, a ser realizado, poderá mostrar, de maneira decisiva, as poderosas correlações que fazem do Espiritismo, como o assinalaram Kardec, Léon Denis e Oliver Lodge, uma síntese histórica e conceptual do conhecimento, destinada a reformar o mundo. 


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