domingo, 12 de março de 2017

O homem, espírito imortal



ESPÍRITO

Ideias principais


» Os conceitos filosóficos e científicos mais conhecidos indicam que Espírito é: alma racional ou intelecto; pneuma ou sopro animador; ser incorpóreo; matéria sutil; personalidade.

» A expressão “Penso, logo existo”, de Descartes, é o conceito de Espírito mais aceito no meio científico.

» Todas as religiões do passado e do presente concordam quanto ao princípio da existência do Espírito, e da sua sobrevivência além da existência física; porém, as interpretações, nesse aspecto, são diversificadas.

» Para o Espiritismo há dois elementos distintos e gerais do Universo, ambos criados por Deus: Espírito e matéria. O Espírito é revestido de matéria semimaterial, o perispírito, que serve de molde à formação do corpo que será utilizado durante a reencarnação. O Espírito sobrevive à morte do corpo físico e pode [...] renascer quantas vezes se fizerem necessárias, consonante o princípio da reencarnação. Quando encarnado o Espírito é chamado alma.

Allan Kardec: O livro dos espíritos, questões 27, 134, 135 e 135-a

Subsídios

Etimologicamente, a palavra Espírito, do latim spiritus, significa respiração ou sopro. Também pode referir-se a alma, coragem ou vigor. No grego, Espírito pneuma, traduzida como respiração (sopro) que, metaforicamente, significa descreve um ser, um, espírito ou, até mesmo, influência espiritual. No hebraico o termo para Espírito é ruah que, modernamente, pode ser simbolizado como psique (do grego psychein = soprar).

Originalmente, psique era utilizado como uma das características da vida humana; mais tarde evoluiu para a ideia de vida, propriamente dita, e, por fim, como sinônimo de alma, considerada o princípio da vida. A psique seria então a “alma das sombras” (dos mortos) em oposição à “alma do corpo”.

A palavra Espírito apresenta, portanto, dois contextos, um metafísico e outro metafórico. O primeiro faz parte das abordagens filosóficas. O segundo está relacionado ao sentido etimológico e ao simbolismo usualmente utilizados pelos poetas e escritores.

As religiões e as tradições espiritualistas consideram Espírito como um princípio incorpóreo. Segundo a Doutrina Espírita, Espírito (1) é a individualização ou humanização do princípio inteligente do Universo.

1. Espírito: Conceitos filosóficos e científicos


A Filosofia apresenta cinco interpretações básicas para Espírito, assim expressos:

» Alma racional ou intelecto – que “[...] é o significado predominante na filosofia moderna e contemporânea, bem como na linguagem comum.” (2)
» Pneuma ou sopro animador – conceito admitido desde a época dos filósofos estoicos* , para os quais Espírito é “aquilo que vivifica”.

_________________________________


* Estoicismo: escola filosófica grega, fundada no século III A.C. por Zenão de Cítio. O estoicismo é uma doutrina filosófica que afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino (noção que os estoicos tomam de Heráclito e desenvolvem). A alma está identificada com este princípio divino, como parte de um todo ao qual pertence. Este logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele; graças a ele o mundo é um kosmos (termo que em grego significa “harmonia”).


Essa interpretação permaneceria nos séculos seguintes, como este de Immanuel Kant (1724–1804), para quem Espírito é “[...] o princípio vivificante do sentimento.”(2)

_________________________________

» Ser incorpóreo – genericamente, engloba as almas dos mortos, anjos e demônios. Dentro desse contexto, Kant também afirmava que “[...] Espírito é um ser dotado de razão e sentimento, que o vivifica.”(2)
» Matéria sutil ou impalpável – conhecida como força que anima as coisa (conceito semelhante ao de pneuma). Alguns filósofos do Renascimento (3) (séculos XIII ao XVII) desenvolveram essa ideia, resgatada dos antigos estudos estoicos. Os seus principais representantes foram o ocultista cristão Heinrich Cornellius Agripa (4) (1486–1537) e Paracelso (4) (1493–1541), cujo nome verdadeiro era Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, grande médico e ocultista.
» Capacidade pensante:
Foi Descartes (1596–1650) quem introduziu e impôs esse significado. [...] Portanto, a rigor, não sou mais que uma coisa que penso, um Espírito, um intelecto ou uma razão, termos cujo significado antes me era desconhecido (2) (Méditations touchant la premiéres philosophie, 1641).
As ideias de Descartes, sintetizadas na expressão “penso, logo existo” (cogito, ergo sum) definiram a linha do pensamento científico dos séculos seguintes, sobretudo entre o XIX e o XX, época da predominância das ideias positivistas. Seu pensamento persiste no meio científico da atualidade, de forma que Espírito pode ser sintetizado no conjunto de faculdades intelectuais, genericamente definidas como mente.


Para os filósofos espiritualistas, Espírito é um ser dotado de inteligência e sentimento, ou ser pensante dos cientistas. Para os cientistas materialistas, que nada admitem além da matéria, o Espírito é visto como um princípio material organizado por um conjunto de leis físicas que produziram, em consequência, o sistema nervoso, sede do pensamento. Nesse sentido Espírito é o mesmo que inteligência (capacidade de conhecer).
Os exageros de algumas concepções filosóficas, religiosas e científicas criaram, contudo, dicotomia entre os conceitos de Espírito e de matéria. Aliás, Voltaire (1694–1778), pseudônimo de François-Marie Arouet, famoso escritor e filósofo iluminista* francês, analisou minuciosamente o verbete alma, distribuindo suas ideias em onze itens do seu livro Dicionário Filosófico. Nesses itens, cujo resumo é apresentado em seguida, o filósofo destaca as diferentes ideias existentes à sua época.

_________________________________


* Iluminismo: movimento surgido na França do século XVII e que defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica que dominava a Europa desde a Idade Média. Para os filósofos iluministas o pensamento racional deveria ser levado adiante, substituindo as crenças religiosas e o misticismo que, segundo eles, bloqueavam


a evolução do homem. O homem deveria ser o centro e passar a buscar respostas para as questões que, até então, eram justificadas somente pela fé.

_________________________________


2. Conceitos históricos de alma ou Espírito


Para os egípcios antigos (11) a alma estava ligada ao KA (perispírito), elemento imaterial e invisível, que sobrevivia à morte do corpo. A alma renascia inúmeras vezes e podia comunicar-se com os mortos. Os babilônicos “[...] acreditavam que a morte não era o fim da existência do homem. A vida futura, para eles, era tida como um “reino subterrâneo”, para onde caminhariam, sem distinção, todos os falecidos.”(12)
Os hindus (13) admitiam a reencarnação do Espírito.

O culto aos antepassados, realizado pelos chineses (14) indica a crença na imortalidade do Espírito, fortemente arraigada às tradições espirituais desse povo. Já os antigos persas (15) (iranianos atualmente) seguiam os preceitos do sábio Zoroastro que, entre outros ensinamentos, pregava que os homens podiam ser influenciados pelos bons ou maus Espíritos.

3. O que é Espírito segundo o Espiritismo


Para a Doutrina Espírita há dois elementos distintos e gerais do Universo, criados por Deus: Espírito e matéria. (16) O Espírito, encarnado ou desencarnado, está revestido de uma matéria semimaterial, o perispírito,(17) que serve de molde para construção do corpo físico. Quando encarnado, é chamado de alma, mas alma e Espírito são palavras sinônimas,(18) utilizadas respectivamente apenas para indicar o ser que possui corpo físico (encarnado) e o que não possui (desencarnado).

O estado natural do Espírito é de ser livre, de viver no plano espiritual, no qual o Espírito mantém sua personalidade e suas características individuais. Assim, as reencarnações, por mais numerosas que sejam, são sempre temporárias. Ainda segundo a Doutrina Espírita, a interação do Espírito com o corpo físico se dá, necessariamente, através do perispírito: “[...] Antes de se unir ao corpo, a alma é um dos seres inteligentes que povoam o mundo invisível e que revestem temporariamente um envoltório carnal para se purificarem e se esclarecerem”.(19)

Para os orientadores da Codificação, os “[...] Espíritos são a individualização do princípio inteligente, como os corpos são a individualização do princípio material. A época e o modo dessa formação é que são desconhecidos.”(20)

Quanto à natureza do Espírito, sabemos muito pouco a respeito, como esclarece Kardec: (21)

"A natureza íntima do Espírito propriamente dito, isto é, do ser pensante, nos é inteiramente desconhecida. Ele se nos revela pelos seus atos e esses atos não podem impressionar os nossos sentidos, a não ser por um intermediário material. O Espírito precisa, pois, de matéria, para atuar sobre a matéria. Tem por instrumento direto de sua ação o perispírito, como o homem tem o corpo. [...] Depois, serve-lhe também de agente intermediário o fluido universal, espécie de veículo sobre o qual ele atua, como nós atuamos sobre o ar para obter determinados efeitos, por meio da dilatação, da compressão, da propulsão, ou das vibrações."

Outro ponto fundamental, revelado pela Doutrina Espírita, é fazer clara distinção entre Espírito e matéria. O principal atributo do Espírito é a inteligência. O corpo físico e o perispírito são elementos materiais que se submetem à vontade do Espírito. Os órgãos e todas as estruturas biológicas do corpo físico e do perispírito são “animados” pelo fluido vital, uma das modificações do fluido cósmico universal, que lhes concede vitalidade.

Dessa forma, a Doutrina Espírita também não confunde Espírito com a energia vital que faz funcionar os sistemas, órgãos, tecidos e células do corpo físico e do perispírito. No cadáver já não há mais energia vital, fato que caracteriza o fenômeno da morte, mas o Espírito sobrevive, passando a viver em outra dimensão, no mundo espiritual, porém revestido do seu corpo perispiritual. Assim, esclarece Kardec: “O Princípio vital, é o princípio da vida material e orgânica, seja qual for a sua fonte,e que é comum a todos os seres vivos, desde as plantas até o homem. O princípio vital é coisa distinta e independente, já que pode haver vida com exclusão da faculdade de pensar."22

4. Conclusão


Em síntese, afirma a Doutrina Espírita em relação ao Espírito:

» A dúvida relativa à existência dos Espíritos tem como causa principal a ignorância acerca da sua verdadeira natureza. Geralmente, são figurados
como seres à parte na Criação e cuja necessidade não está demonstrada.(23)
» Seja qual for a ideia que se faça dos Espíritos, a crença neles necessariamente se baseia na existência de um princípio inteligente fora da matéria. (23)
» Desde que se admite a existência da alma e sua individualidade após a morte, é preciso que se admita, também: 1º) que a sua natureza é diferente da do corpo, visto que, separada deste, deixa de ter as propriedades peculiares ao corpo; 2º) que goza da consciência de si mesma, pois é passível de alegria ou sofrimento, sem o que seria um ser inerte e de nada nos valeria possuí-la.(24)
» Os Espíritos vivem no plano espiritual: [...] não um lugar determinado e circunscrito, mas o espaço universal: é todo um mundo invisível, no meio do qual vivemos, que nos cerca e nos acotovela incessantemente.(25)
» Ora, essas almas que povoam o espaço são justamente aquilo a que chamamos Espíritos. Assim, pois, os Espíritos são apenas as almas dos homens, despojadas do invólucro corpóreo. Se os Espíritos fossem seres à parte, sua existência seria mais hipotética. Se, porém, se admitir que há almas, há que se admitir também os Espíritos que são simplesmente as almas e nada mais. Se se admitir que as almas estão por toda parte,ter-se-á que admitir igualmente que os Espíritos estão por toda parte.(26)
» O Espírito "[...] é o ser que pensa e sobrevive [à morte]. O corpo não passa de um acessório do Espírito, de um envoltório, de uma veste, que ele deixa quando está usada. Além desse envoltório material, o Espírito tem um segundo, semimaterial, que o liga ao primeiro. Por ocasião da morte, despoja-se deste, porém não do outro, a que damos o nome de perispírito. Esse envoltório semimaterial, que tem a forma humana, constitui para o Espírito um corpo fluídico, vaporoso, mas que, pelo fato de nos ser invisível no seu estado normal, não deixa de ter algumas das propriedades da matéria".(27)

Referências

1. KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2010, questões 23-28, p. 87-90.
2. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 354.
3. http://pt.wikipedia.org/wiki/Renascimento.
4. http://compossivel.wordpress.com/category/filosofia-renascentista/.
5. VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Tradução de Ciro Mioranza e Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Editora Escala, 2008, p. 35.
6. . p. 36.
7. . p. 37.
8. . p. 39.
9. . p. 45.
10. . p. 47.
11. XAVIER, Francisco Cândido. A caminho da luz. Pelo Espírito Emmanuel. 37. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008. Cap.4, p. 50-53.
12. BUENO, Taciano. O espiritismo confirmado pela ciência. 1. ed. São Paulo: JR Editora, 2006. Cap.3, item 69, p. 98-99.
13. XAVIER, Francisco Cândido. A caminho da luz. Op. Cit. Cap. 5, p. 64.14. . Cap. 8, p.92.
15. IMBASSAHY, Carlos. Religião. 5. ed. Rio de Janeiro: FEB, 200. Item: Zoroastro, p. 181.
16. KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Op. Cit. Questão 27, p.88-89.
17. . Questões 135 e 135-a, p. 149.
18. . Questão 134, p. 148.
19. . Questão 134-b, p. 149.
20. . Questão 79, p. 120.
21. . O livro dos médiuns. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008. Segunda parte, cap. 1, item 58, p. 95-96.
22. . O livro dos espíritos. Op. Cit. Introdução, parte II, p. 26. 23. . O livro dos médiuns. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008. Primeira parte, cap. 1, item 1, p.22.
24. . Item 2, p.22.
25. . p.23.
26. . p.24-25.
27. . Item 3, p. 25-26.

Fonte:

http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2013/04/EADE-5-CIENCIA-E-FILOSOFIA-ESPIRITAS.pdf
Roteiro 9


O HOMEM TRINO

As investigações e os estudos psicológicos nos mostram o desenvolvimento do homem como um processo psicogenético. Os dados da Psicologia da Criança e da Psicologia da Adolescência, partindo da indiferenciação psíquica das primeiras fases da infância, levam-nos à definição do "eu" e à elaboração da personalidade, como afirmação da consciência, em sua plenitude, no "agora", existencial. Mas todos esses dados, ao contrário do que pretendem as correntes de pensamento materialista ou positivistas, comprovam o pressuposto religioso e filosófico da existência do espírito. A própria ontologia fenomenológica do existencialismo sartreano não pode fugir a essa realidade, ao colocar o problema do ser na existência como um desenvolvimento dialético do "em si" hegeliano.

A fase infantil de indiferenciação psíquica é exatamente aquela em que o ser, na sua forma apriorística, como "em si", e portanto na sua anterioridade espiritual, luta para se integrar na existência. Essa luta se resolve na progressiva definição do "eu", isto é, no domínio progressivo do instrumento físico da manifestação, pelo espírito que nele se manifesta. A elaboração da personalidade atual, muito longe de ser um processo improvisado e imediato, revela a presença de uma herança psíquica, e portanto de elementos anteriores, que em vão o materialismo científico pretende reduzir às leis da hereditariedade biológica. Essa herança é, antes de tudo, como afirma René Hubert, "uma realidade subjetiva individual e irredutível", portanto uma consciência, um espírito, que não se elabora no presente, mas apenas reelabora os instrumentos de sua manifestação atual.

O Espiritismo esclarece o que podemos chamar "a mecânica dessa manifestação", através de uma concepção trinária do homem. O elemento fundamental da evolução psicogenética é o espírito, o próprio ser que se projeta na existência. Nele está o poder que aglutina os demais elementos, que os coordena e os põe em desenvolvimento. Em segundo lugar aparece o perispírito ou corpo espiritual, duplicata energética do corpo físico, ou o modelo energético deste, como queria Claude Bernard. E em terceiro lugar, o próprio corpo físico, resultante de um verdadeiro processo dialético, síntese orgânica do espírito e do perispírito, que permite a presença do ser na existência. Essa concepção não foi decalcada de nenhuma outra, mas resultou das experiências dos diálogos de Kardec com os Espíritos, numa época e num país em que as concepções místicas orientais não encontravam clima para florescer. Convém ressaltar, ainda, que as experiências mediúnicas de Kardec foram confirmadas por experimentações científicas, realizadas por cientistas não-espíritas.

O homem se apresenta, assim, como a conjugação de três entidades distintas, numa única manifestação. E isso levanta a ponta do véu que encobre o mistério da trindade divina, revelando mais profundamente a natureza antropomórfica do velho dogma, presente em todas as grandes religiões antigas. Por outro lado, essa concepção nos faz compreender a existência, no plano coletivo, de uma fase de misticismo indiferenciado, ou de indiferenciação mística, em que a realidade espiritual, confundida com a material, assemelha-se à indiferenciação psíquica das fases infantis, no plano individual. O dogmatismo então se explica, da mesma maneira, como a necessidade de elaboração racional da realidade, que se exprime através do apriorismo absolutista da intuição. O dogma de fé das religiões equivale ao "quero" irracional das crianças, que querem e exigem, mesmo sem saberem por quê.

As três funções da consciência - a teórica, a prática e a estética - têm suas raízes, portanto na própria estrutura tríplice do homem. Se definirmos a primeira dessas funções como sendo a razão, o esquema de representações teóricas da realidade objetiva, compreenderemos que o homem, antes de conhecer e compreender, vive e experimenta. Essa vivência, que lhe dá a experiência vital, da qual decorrem as categorias da razão, pelo fato mesmo de se desenvolver num processo, de se desdobrar, separa a razão do sentimento, estabelece dois planos distintos na consciência. O que estava fundido na indiferenciação psíquica, separa-se, ao diferenciar-se. A seguir, o desenvolvimento da razão, absorvendo o interesse do homem pelo conhecimento do mundo, provoca a alienação do espírito. É assim que o materialismo aparece, na História, como uma flor de estufa, um produto artificial da razão, elaborado pelas elites intelectuais, sem jamais penetrar as camadas profundas da vida social. É por isso que nunca houve, e jamais haverá, um povo materialista e ateu. As fases racionais de descrença nada mais são do que momentos de desequilíbrio, que acabam reconduzindo os homens ao espiritualismo, através da síntese estética.

A concepção espírita do homem, como unidade trina, tanto se opõe ao dualismo religioso, quanto ao monismo materialista e ao pluralismo ocultista. Não obstante, como essa concepção é uma síntese estética, nela encontramos os elementos opostos, reduzidos ao equilíbrio da fusão. Assim, quando Kardec define a alma como sendo o espírito-encarnado, temos a dualidade alma-corpo; quando define o corpo como produção ou projeção do próprio espírito, temos o monismo; e quando define o espírito como entidade independente, possuindo as diversas funções da consciência e capaz de projetá-las por várias maneiras, no plano espiritual e no plano material, temos o pluralismo. Os vários corpos da concepção septenária do ocultismo apresentam-se como simples peças do mecanismo da manifestação do espírito.

As pessoas que consideram simplista a concepção trinaria do homem, e preferem a septenária, tendem para o pluralismo afetivo. As que, ao contrário, a consideram complexa, e preferem a concepção monista, de tipo heckeliano ou marxista, tendem para o monismo materialista. O homem trino é, portanto, uma concepção típica do Espiritismo, resultante da síntese dialética que se processou no desenvolvimento histórico da humanidade. Uma concepção que assinala a maturidade espiritual do homem, pois representa a superação das fases de sincretismo afetivo e de egocentrismo racional, tanto existentes no indivíduo, quanto na espécie.

PLURALISMO E MONISMO 

O homem trino, constituído de espírito, perispírito e corpo, segundo a concepção espírita, não é entretanto uma entidade dualista ou pluralista. Pelo contrário, sua natureza é monista, no sentido unitário, original, da expressão. O homem trino é essencialmente uno, porque é espírito, e só este o define como ser. O perispírito e o corpo físico não são mais do que os instrumentos da sua manifestação. No fenômeno da morte, temos o aniquilamento do corpo físico, seguido da sobrevivência pelo perispírito. Este também pode ser aniquilado, e a ele sobreviverá o espírito, que o reconstruirá quando necessário, como também reconstruirá o corpo físico.

Há duas espécies de objeção filosófica, que os pensadores modernos, apoiados na concepção científica, opõem a essa concepção espírita do homem. A primeira, é a do dualismo. Entendem que o homem do Espiritismo é o mesmo das religiões dualistas, implicando a dicotomia alma-corpo. A Segunda, é a do pluralismo, decorrente da sua constituição tríplice. A essas duas espécies de objeção a resposta se encontra na própria doutrina. O Espiritismo é uma concepção monista do universo, pois apresenta como fundamento de toda a pluralidade existencial a realidade única do espírito.

Não há dúvida que as dicotomias alma-corpo e Deus-mundo aparecem nessa concepção. E a afirmação da sua natureza monista se torna mais complexa e difícil, quando, saindo do plano individual, para o universal, encontramos a negação do panteísmo. Kardec afirma, no primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos comentando a concepção de Deus formulada pelos espíritos: "A inteligência de Deus se revela nas suas obras, como a de um pintor no seu quadro; mas as obras de Deus não são o próprio Deus, como o quadro não é o pintor que o concebeu e executou." A distinção é precisa. Deus é o obreiro, o universo é a sua obra. Mas não devemos esquecer que a analogia é apenas uma forma de esclarecimento, uma ilustração de processos que não podem ser descritos com precisão. Se o pudessem, a analogia seria dispensável.

Podemos dizer que Deus está para o universo assim como o espírito está para o corpo. De qualquer maneira, o corpo é uma projeção do espírito na matéria, é obra do espírito. Por isso mesmo, não é o espírito. Não obstante, só existe e só vive em função do espírito, penetrado por ele, submetido às suas leis. Na vida física, identificamos o espírito pelo corpo. E mesmo depois que este perece, é ainda através da sua forma que identificamos o espírito, nos fenômenos de vidência, de aparição e de materialização. Na própria vida espiritual, nas regiões próximas da densidade física, é a forma perispiritual do corpo que serve para identificação do espírito. Esta sintonia perfeita, esta união que se resolve em identidade, ou esta unidade substancial, para falarmos como Aristóteles, tanto existe no plano individual, quanto no universal. Dela decorre a confusão entre a alma e o corpo, de que tratou Descartes, e a confusão entre Deus e o Universo, que atingiu em Espinosa sua mais refinada expressão.

Entendem alguns críticos do Espiritismo que essas dicotomias são resíduos da formação religiosa de Kardec. Outros entendem que a separação entre Deus e o universo decorre da impossibilidade de uma definição de Deus, como Alma-do-Mundo, sem lhe ferir a perfectibilidade. Nem uma, nem outra coisa. Kardec interrogou os espíritos, que sustentaram, como vemos nas perguntas e respostas de O Livro dos Espíritos, a independência de Deus em relação ao Universo. Kardec debateu o problema com os seus instrutores ou informantes espirituais, e só depois disso chegou à formulação do princípio doutrinário que estabelece a aparente dicotomia, por ter concluído pela impossibilidade lógica de tomarmos o efeito pela causa, Além disso, o próprio exame da questão, no plano empírico, nos mostra uma seqüência indisfarçável de ação e reação. Assim como a árvore nasce da semente, cujo impulso vital específico é um mistério para a ciência humana, e assim como o homem, em sua forma corpórea, procede do embrião, todas as coisas materiais se originam de impulsos ocultos, movidos por intenções claramente determinadas. Há, pois, uma zona de intenção, subjacente no mundo material, que por si, mesma determina a diferença entre os dois planos: o visível e o invisível.

Apesar disso, ou por isso mesmo, o dualismo e o pluralismo não são mais do que aparência, uma vez que o espírito e a matéria se confundem na exigência de sua própria reciprocidade. Assim, o homem é ao mesmo tempo espírito e corpo, pois o corpo nada mais é que a manifestação do espírito. Kardec leva mais longe a definição monista do universo, chegando a declarar, no primeiro capítulo da Segunda parte de O Livro dos Espíritos: "Dizemos que os espíritos são imateriais, porque a sua essência difere de tudo o que conhecemos." Os próprios espíritos lhe declaram que não é bem certo chamar o espírito de imaterial, acentuando: "Imaterial não é o termo apropriado; incorpóreo, seria mais exato, pois deves compreender que, sendo uma criação, o espírito deve ser alguma coisa."

Como vemos, o dualismo e o pluralismo estão refutados pela própria doutrina, que se apresenta de maneira tríplice, fundada numa concepção tríplice do universo e do homem, mas tendo a sua triplicidade como simples estrutura funcional de um todo, que é único, do qual tudo procede e ao qual tudo reverte. Não é outra a concepção monista do materialismo científico, com a única diferença de encarar a unidade pelo lado de fora, que é o dos efeitos, ou da manifestação. O Espiritismo encara essa unidade do lado de dentro, ou a partir das causas, que afinal se resumem numa causa única. O homem trino é uno, como o universo trino é uno, e una é a doutrina tríplice que os explica.


Fonte: O espírito e o tempoJ. Herculano Pires



Mediunidade e Mediunismo


CONCEITO DE MEDIUNIDADE 


Médium quer dizer medianeiro, intermediário. Mediunidade é a faculdade humana, natural, pela qual se estabelecem as relações entre homens e espíritos. Não é um poder oculto que se possa desenvolver através de práticas rituais ou pelo poder misterioso de um iniciado ou de um guru. A Mediunidade pertence ao campo da comunicação.


Desenvolve-se naturalmente nas pessoas de maior sensibilidade para a captação mental e sensorial de coisas e fatos do mundo espiritual que nos cerca e nos afeta com as suas vibrações psíquicas e afetivas. Da mesma forma que a inteligência e as demais faculdades humanas, a Mediunidade se desenvolve no processo de relação. Geralmente o seu desenvolvimento é cíclico, ou seja, processa-se por etapas sucessivas, em forma de espiral. As crianças a possuem, por assim dizer, à flor da pele, mas resguardada pela influência benéfica e controladora dos espíritos protetores, que as religiões chamam de anjos da guarda. Nessa fase infantil as manifestações mediúnicas são mais de caráter anímico; a criança projeta a sua alma nas coisas e nos seres que a rodeiam, recebem as intuições orientadoras dos seus protetores, às vezes vêem e denunciam a presença de espíritos e não raro transmitem avisos e recados dos espíritos aos familiares, de maneira positiva e direta ou de maneira simbólica e indireta. Quando passam dos sete ou oito anos integram-se melhor no condicionamento da vida terrena, desligando-se progressivamente das relações espirituais e dando mais importância às relações humanas. O espírito se ajusta no seu escafandro para enfrentar os problemas do mundo. Fecha-se o primeiro ciclo mediúnico, para a seguir abrir-se o segundo. Considera-se então que a criança não tem mediunidade, a fase anterior é levada à conta da imaginação e da fabulação infantis.

É geralmente na adolescência, a partir dos doze ou treze anos, que se inicia o segundo ciclo. No primeiro ciclo só se deve intervir no processo mediúnico com preces e passes, para abrandar as excitações naturais da criança, quase sempre carregadas de reminiscências estranhas do passado carnal ou espiritual. Na adolescência o seu corpo já amadureceu o suficiente para que as manifestações mediúnicas se tornem mais intensas e positivas. É tempo de encaminhá-la com informações mais precisas sobre o problema mediúnico. Não se deve tentar o seu desenvolvimento em sessões, a não ser que se trate de um caso obsessivo. Mas mesmo nesse caso é necessário cuidado para orientar o adolescente sem excitar a sua imaginação, acostumando-o ao processo natural regido pelas leis do crescimento. O passe, a prece, as reuniões para estudo doutrinário são os meios de auxiliar o processo sem forçá-lo, dando-lhe a orientação necessária. Certos adolescentes integram-se rápida e naturalmente na nova situação e se preparam a sério para a atividade mediúnica. Outros rejeitam a mediunidade e procuram voltar-se apenas para os sonhos juvenis. É a hora das atividades lúdicas, dos jogos e esportes, do estudo e aquisição de conhecimentos gerais, da integração mais completa na realidade terrena.

Não se deve forçá-los, mas apenas estimulá-los no tocante aos ensinos espíritas. Sua mente se abre para o contato mais profundo e constante com a vida do mundo. Mas ele já traz na consciência as diretrizes próprias da sua vida, que se manifestarão mais ou menos nítidas em suas tendências e em seus anseios. Forçá-lo a seguir um rumo que repele é cometer uma violência de graves consequências futuras. Os exemplos dos familiares influem mais em suas opções do que os ensinos e as exortações orais. Ele toma conta de si mesmo e firma a sua personalidade. É preciso respeitá-lo e ajudá-lo com amor e compreensão. No caso de manifestações espontâneas da mediunidade é conveniente reduzi-las ao círculo privado da família ou de um grupo de amigos nas instituições juvenis, até que sua mediunidade se defina, impondo-se por si mesma.

O terceiro ciclo ocorre geralmente na passagem da adolescência para a juventude, entre os dezoito e vinte e cinco anos. É o tempo, nessa fase, dos estudos sérios do Espiritismo e da Mediunidade, bem como da prática mediúnica livre, nos centros e grupos espíritas. Se a mediunidade não se definiu devidamente, não se deve ter preocupações.

Há processos que demoram até a proximidade dos 30 anos, da maturidade corporal, para a verdadeira eclosão da mediunidade. Basta mantê-lo em ligação com as atividades espíritas, sem forçá-lo. Se ele não revela nenhuma tendência mediúnica, o melhor é dar-lhe apenas acesso a atividades sociais ou assistenciais. As sessões de educação mediúnica (impropriamente chamadas de desenvolvimento) destinam-se apenas a médiuns já caracterizados por manifestações espontâneas, portanto já desenvolvidos.

Há ainda um quarto ciclo, correspondente a mediunidades que só aparecem após a maturidade, na velhice ou na sua aproximação. Trata-se de manifestações que se tornam possíveis devido às condições da idade: enfraquecimento físico, permitindo mais fácil expansão das energias perispiríticas; maior introversão da mente, com a diminuição de atividades da vida prática, estado de apatia neuropsíquica, provocado pelas mudanças orgânicas do envelhecimento. Esses fatores permitem maior desprendimento do espírito e seu relacionamento com entidades desencarnadas. Esse tipo de mediunidade tardia tem pouca duração, constituindo uma espécie de preparação mediúnica para a morte. Restringe-se a fenômenos de vidência, comunicação oral, intuição, percepção extra-sensorial e psicografia. Embora seja uma preparação, a morte pode demorar vários anos, durante os quais o espírito se adapta aos problemas espirituais com que não se preocupou no correr da vida. Esses fatos comprovam o conceito de mediunidade como simples modalidade do relacionamento homem-espírito. Kardec lembra que o fato de o espírito estar encarnado não o priva de relacionar-se com os espíritos libertos, da mesma maneira que um cidadão encarcerado pode conversar com um cidadão livre através das grades.

Não se trata das conhecidas visões de moribundos no leito mortuário, mas de típico desenvolvimento tardio de mediunidade que, pela completa integração do indivíduo na vida carnal, imantado aos problemas do dia-a-dia, não conseguiu aflorar. A sua manifestação tardia lembra o adágio de que os extremos se tocam. A velhice nos devolve à proximidade do mundo espiritual, em posição semelhante à das crianças.

Na verdade, a potencialidade mediúnica nunca permanece letárgica. Pelo contrário, ela se atualiza com mais freqüência do que supomos, passa de potência a ato em diversos momentos da vida, através de pressentimentos, previsões de acontecimentos simples, como o encontro de um amigo há muito ausente, percepções extra-sensoriais que atribuímos à imaginação ou à lembrança e assim por diante. Vivemos mediunicamente, entre dois mundos e em relação permanente com entidades espirituais.  Durante o sono, como Kardec provou através de pesquisas ao longo de mais de dez anos, desprendemo-nos do corpo que repousa e passamos ao plano espiritual. Nos momentos de ausência psíquica de distração, de cochilo, distanciamo-nos do corpo rapidamente e a ele retornamos como o pássaro que voa e volta ao ninho. A Psicologia procura explicar esses lapsos fisiologicamente, mas as reações orgânicas a que atribui o fato não são causa e sim efeito de um ato mediúnico de afastamento do espírito. Os estudos de Hipnotismo comprovam isso, mostrando que a hipnose interfere constantemente em nossa vigília, fazendo-nos dormir em pé e sonhar acordados, como geralmente se diz. A busca científica de uma essência orgânica da mediunidade nunca deu nem dará resultados. Porque a mediunidade tem sua essência na liberdade do espírito.

Chegando a este ponto podemos colocar o problema em termos mais precisos: a mediunidade é a manifestação do espírito através do corpo. No ato mediúnico tanto se manifesta o espírito do médium como um espírito ao qual ele atende e serve. Os problemas mediúnicos consistem, portanto, simplesmente na disciplinação das relações espírito-corpo. É o que chamamos de educação mediúnica. Na proporção em que o médium aprende, como espírito, a controlar a sua liberdade e a selecionar as suas relações espirituais, sua mediunidade se aprimora e se torna segura. Assim o bom médium é aquele que mantém o seu equilíbrio psicofísico e procede na vida de maneira a criar para si mesmo um ambiente espiritual de moralidade, amor e respeito pelo próximo.

A dificuldade maior está em se fazer o médium compreender que, para tanto, não precisa tornar-se santo, mas apenas um homem de bem. Os objetivos de santidade perseguidos pelas religiões, através dos milênios, gerou no mundo uma expectativa incômoda para todos os que se dedicam aos problemas espirituais. Ninguém se torna santo através de sufocação dos poderes vitais do homem e adoção de um comportamento social de aparência piedosa. O resultado disso é o fingimento, a hipocrisia que Jesus condenou incessantemente nos fariseus, uma atitude permanente de condescendência e bondade que não corresponde às condições íntimas da criatura. O médium deve ser espontâneo, natural, uma criatura humana normal, que não tem motivos para se julgar superior aos outros. Todo fingimento e todo artifício nas relações sociais leva os indivíduos à falsidade e à trapaça. A chamada reforma-íntima esquematizada e forçada não modifica ninguém, apenas artificializa enganosamente os que a seguem. As mudanças interiores da criatura decorrem de suas experiências na existência, experiências vitais e consciências que produzem mudanças profundas na visão íntima do mundo e da vida.

Essa colocação dos problemas mediúnicos sugere um conceito da mediunidade que nos leva às próprias raízes do Espiritismo. A Mediunidade nos aparece como o fundamento de toda a realidade. O momento do fiat, da Criação do Cosmos, é um ato mediúnico. Quando o espírito estrutura a matéria para se manifestar na Criação, constrói o elemento intermediário entre ele e a realidade sensível ou material. A matéria se torna o médium do espírito. Assim, a vida é uma permanente manifestação mediúnica do espírito que, por ela, se projeta e se manifesta no plano sensível ou material. O Inteligível, que é o espírito, o princípio inteligente do Universo, dá a sua mensagem inteligente através das infinitas formas da Natureza, desde os reinos mineral, vegetal e animal, até o reino hominal, onde a mediunidade se define em sua plenitude. A responsabilidade do Homem, da Criatura Humana, expressão mais elevada do Médium, adquire dimensões cósmicas. Ele é o produto multimilenar da evolução universal e carrega em sua mediunidade individual o pesado dever de contribuir para que a Humanidade realize o seu destino cósmico. A compreensão deste problema é indispensável para que os médiuns aprendam a zelar pelas suas faculdades.

O MEDIUNISMO


As formas primitivas de mediunidade provêm das selvas e das regiões geladas ou áridas em que a vida humana permaneceu em condições rudimentares. O homem é um ser mediúnico e todo o seu desenvolvimento seguiu as linhas da evolução da sua potencialidade mediúnica. A idéia da Divindade, de um poder superior que criou o mundo é inata no homem, como o demonstram as pesquisas antropológicas. Dessa idéia básica em sintonia com o assombro do mundo, misterioso e cheio de seres estranhos, nasceu a Magia. O sentimento mágico do mundo estabeleceu as relações entre os homens e as coisas e os outros seres. A idéia do poder das coisas e dos seres brotou naturalmente das experiências na luta para a sobrevivência. A lei de adoração, estudada no Livro dos Espíritos, levou a imaginação primitiva aos ritos do culto solar e lunar, das montanhas coroadas de nuvens, dos grandes rios misteriosos e assim por diante. A reverência aos chefes poderosos desenvolveu os ritos de submissão, que se estenderam aos pagés e xamãs, sacerdotes mágicos das tribos e das hordas, dotados de poderes mediúnicos. Os processos mágicos desenvolveram-se através das manifestações mediúnicas. Abria-se o caminho para o desenvolvimento das religiões mitológicas e das religiões reveladas, estas apoiadas na crença dos homens-deuses, conhecedores dos mistérios da vida e da morte. A evolução espiritual do homem abria a fase das grandes religiões nas regiões em que a civilização avançara. Os dons mediúnicos reafirmavam a crença nos poderes divinos, através dos fenômenos produzidos por indivíduos que os possuíam.

A expressão mediunismo, criada por Emmanuel designa as formas primitivas de Mediunidade, que fundamentam as crenças e religiões primitivas. Todas as formas de religiões primitivas, sem desenvolvimento cultural e intelectual, caracterizam-se por práticas mágicas ligadas ao mediunismo. As religiões africanas, transplantadas ao Brasil e outros países americanos pelo tráfico negreiro, e misturadas às religiões indígenas e primitivas desses países, desenvolveram largamente no Continente diversas formas de mediunismo. O processo natural de sincretismo religioso, já iniciado na própria África com a mistura das religiões tribais com o Islamismo e o Catolicismo, deram a essas formas um impulso em direção à institucionalização religiosa.

A diferença entre Mediunismo e Mediunidade está no problema de conscientização do problema mediúnico. Nas religiões primitivas não havia nem podia haver reflexão sobre os fenômenos e seu sentido e natureza. Tudo se resumia na aceitação dos fatos e nas tentativas de sua utilização para finalidades práticas, objetivas. A Mediunidade é o Mediunismo desenvolvido, racionalizado e submetido à reflexão religiosa e filosófica e às pesquisas científicas necessárias ao esclarecimento dos fenômenos, sua natureza e suas leis. Enquanto o Mediunismo absorve a herança mágica do passado e mistura-se com religiões, crenças e superstições de toda a espécie, a Mediunidade rejeita infiltrações que possam prejudicar a sua natureza racional e comprometer o seu desenvolvimento natural. Integrada na estrutura do Espiritismo, que a estuda e pesquisa através de suas instituições culturais e científicas, ela se torna cada vez mais numa área específica da Teoria do Conhecimento, que terá forçosamente de reconhecer os seus direitos na cultura geral do próximo século.

É curioso o fato de que todas as religiões e correntes do pensamento espiritualista tenham rejeitado e condenado a Mediunidade, que só o Espiritismo reconhece no seu pleno valor e na sua importância fundamental para a vida humana na Terra e o seu desenvolvimento futuro no mundo espiritual. Apontada nas religiões como de natureza diabólica, nas doutrinas espiritualistas refinadas como um campo inferior e perigoso de manifestações suspeitas e perigosas, acusada de responsável pela loucura do mundo, ela foi marginalizada pelos meios culturais e é constantemente atacada pelos donos da verdade e da sabedoria, como o foram o Cristo e o Cristianismo. Não obstante, cresce sem cessar o interesse pela mediunidade no mundo, pois o próprio desenvolvimento científico acabou desembocando no delta da fenomenologia paranormal, obrigado a enfrentar e reconhecer a realidade dos fatores mediúnicos em todos os campos do saber. Pouco importam os preconceitos, as idiossincrasias, as incompreensões dos homens, pois a realidade não pede licença a ninguém para ser o que é.

Ao lado do resguardo e defesa da Mediunidade, os espíritas naturalmente se interessam pelo estudo e a pesquisa dos problemas do Mediunismo, que é, por assim dizer, o chão agreste e rico de cujas escavações milenares foram extraídos os minérios preciosos da Mediunidade. Nas várias formas do Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro a mediunidade eclode muitas vezes, como tufos de vegetais promissores rompendo o chão áspero dos terreiros. Não encontrando ambiente favorável no meio sincrético, essas mediunidades surpreendentes vão transplantar-se para o ambiente espírita e ali florescer e frutificar. Não podemos condenar o Mediunismo. pois isso seria condenar a fonte que nos fornece a água. Há ricos filões de fenômenos no solo fecundo do Mediunismo à espera dos investigadores espíritas.

O que condenamos e temos de condenar é o abuso das práticas mediúnicas nos terreiros, não só por criaturas desprovidas de nível de instrução e cultura, mas também por pessoas culturalmente amadurecidas para compreender o erro que cometem, contribuindo para expansão, em plena civilização da Era Cósmica, das mais grosseiras superstições do longínquo passado humano. Esse abuso é tanto mais grave quando praticado conscientemente por pessoas que estão interessadas na solução de problemas financeiros, políticos e de ordem moral e social. Esses objetivos e os meios usados para consegui-los eram perfeitamente justificáveis na selva, onde a mentalidade primitiva, apegada apenas ao concreto, sem dimensões intelectuais, não podia alcançar objetivos superiores. Mas o homem civilizado que se entrega a essas práticas grosseiras, ligadas a entidades inferiores, age como um inconsciente ou imaturo, que não tem noção de sua própria responsabilidade em relação ao meio em que vive. Cada fração de conhecimento adquirido aumenta a responsabilidade moral do homem na sociedade. Essa responsabilidade não é apenas pessoal e familiar, mas também social. Quem procura práticas selvagens para conseguir benefícios no meio civilizado, ligando-se a estágios já superados na evolução humana, trai a si mesmo e ao meio em que se encontra. Além disso, compromete-se com forças negativas do plano espiritual inferior, que cobram sempre muito caro os serviços prestados, mal ou bem, com resultados ou não, aos incautos clientes.

O Mediunismo divide-se em vários ramos, correspondentes às nações africanas de que procedem. E há graus evolutivos em suas práticas mediúnicas. Nos terreiros de Umbanda as práticas são mais elevadas, voltadas para o bem. Nos de Quimbanda o sangue de animais e a queima de pólvora revelam a brutalidade dos ritos selvagens, que eram práticas de defesa para tribos e no meio civilizado se tornaram práticas maléficas, dirigidas contra desafetos e rivais. Mas há os terreiros de linhas cruzadas, geralmente chamados de Aruanda, onde tanto se pratica o bem para os amigos como o mal para os inimigos. As danças rituais do Candomblé africano encontram sua réplica nativa nas danças indígenas da Poracê. Em Muitos terreiros de Umbanda infiltram-se também as práticas maléficas. Os poderes mediúnicos são desenvolvidos sob a magia dos rituais selvagens. Costumam dizer, os freqüentadores do sincretismo, que as práticas de terreiro são mais fortes e poderosas que as de mesa branca, designação puramente popular das sessões espíritas, originada da superstição que exige, particularmente nos meios rurais, o uso de toalha branca na mesa de sessão, porque a cor branca atrai os espíritos puros. A superstição da força, do poder proveniente de práticas violentas, revela a inversão dos valores espirituais, inversão proveniente da selva, onde a força bruta é a lei. A Macumba, com seus despachos, é uma prática proveniente da mais remota antigüidade. Macumba é instrumento de sopro, geralmente de bambu, que se toca para chamar os espíritos do mato, e o despacho, ao contrário do que geralmente se pensa, não é a oferenda de comidas e bebidas que se coloca nas encruzilhadas e nas esquinas de ruas(adaptação urbana do rito selvagem), mas o envio de espíritos inferiores para atacar as pessoas visadas. A oferenda é a paga que assegura a eficácia do ataque. Os espíritos agressivos, embora não possam comer os manjares e tomar as bebidas, aspiram as suas emanações, como os deuses mitológicos faziam e como o próprio Iavé da Bíblia, o deus judaico, também fazia, como se vê nos relatos bíblicos. Na descrição do Dilúvio, no Gênese bíblico, vemos que Noé fez um altar no Monte Ararat para dar graças a Iavé pela salvação da sua família. No altar foram colocados alimentos de carne fumegante e Iavé compareceu para aspirar as emanações dos alimentos. É incrível que as Igrejas Cristãs até hoje aceitem que esse Iavé glutão era o Deus Supremo e Único que Jesus pregou contra o politeísmo da época.

Essas práticas sincréticas, onde predomina a mentalidade primitiva, são o contrário das práticas espíritas, que se resumem na prece e na meditação, no passe (imposição das mãos, do Evangelho) e na doutrinação caridosa dos espíritos sofredores ou vingativos. Os que chamam isso de Espiritismo o fazem de má-fé ou por ignorância. Por sinal que encontramos nesse capítulo a ignorância ilustrada de sociólogos, antropólogos, psicólogos e médicos, que usam em seus trabalhos e pesquisas a palavra Espiritismo para designar as manifestações do animismo primitivo e do mediunismo selvagem. Devemos sempre repelir esse abastardamento da palavra que Kardec criou como nome genérico de uma doutrina científica e filosófica oriunda do ensino dos Espíritos Superiores. O Espiritismo é unicamente a doutrina que está nas obras de Kardec e dos que continuaram o trabalho do Mestre, sem trair os seus princípios básicos.

O ponto mais perigoso dessas práticas bárbaras e desumanas está no problema da evolução mediúnica do homem. Essas práticas e crenças supersticiosas correspondiam às necessidades primárias dos homens primitivos. Eram boas na selva, ajudavam os selvagens a crer num poder superior e a respeitá-los. Aplicadas ao homem civilizado representam um retrocesso evolutivo de sua mentalidade e personalidade. O ajustamento psíquico do homem civilizado a esses sistemas rudimentares e grosseiros produz desajustes psicológicos e mentais que acabam gerando desequilíbrios graves em criaturas sensíveis, que são afetadas pelos rituais violentos de sangue e pólvora e pela condição geral das práticas selvagens. O desnível cultural já é chocante em si mesmo e a disparidade cala nos freqüentadores de maior evolução mental e moral. Sente-se o restabelecimento do arcaico prestígio da Goécia, a famosa Magia Negra da Antigüidade, que dominou o Ocidente até os fins da Idade Média. As pesquisas de Albert De Rochas sobre a feitiçaria *, ilustradas com dados dos processos medievais dos arquivos do Vaticano, mostram a brutalidade dessas práticas naquele tempo, em que sacerdotes e figuras da nobreza tiveram de ser condenados pelos tribunais eclesiásticos. O impacto dessas condenações concorreu pesadamente para que a sólida estrutura religiosa e teocrática do Milênio acabasse desmoronando. O poder de fascinação dos sistemas mágicos envolveu com facilidade elementos de destaque no Clero e na Política, em virtude dos resíduos brutais do passado nas camadas psico-afetivas da população, mesmo nas classes superiores.

A tendência natural do homem para o mistério e o maravilhoso excita os ânimos e leva criaturas e grupos humanos a verdadeiros delírios, em que os valores da civilização submergem no pântano das paixões. Mas o pior é que, dessas fases de retorno à barbárie, a dignidade humana sai fatalmente esmagada, levando séculos para se recobrar. Não é o mediunismo que responde por isso, mas o apego do homem aos interesses mundanos e o desejo de vencer com mais facilidade e segurança, sob a suposta proteção espiritual de criaturas incultas e grosseiras. O mediunismo é precisamente o instrumento natural de que o homem dispõe para elevar-se ao plano da mediunidade, transcendendo a sua condição tribal. Mas se o homem se entrega ao atavismo da religiosidade mágica e por isso mesmo fanática, serve-se do mediunismo, nessas formas clássicas de civilizações mortas, para repetir os suicídios anteriores. O automatismo dos processos primitivos o leva a repetir os mesmos erros, na mesma antiga e frustrada esperança dos tempos mortos. É isso o que se tem de condenar nos cultos retrógrados desses processos sincréticos e negativos.


Fonte: Mediunidade – Vida e comunicação - J. Herculano Pires
Edicel

Nenhum comentário:

Postar um comentário